Coleção de Botões
 
 
Minha mãe finalmente descansou após lutar bravamente contra um câncer agressivo e doloroso.
Eu sempre admirei a sabedoria e coragem da mulher negra, pobre e analfabeta que venceu todas as dificuldades honestamente, as custas do próprio suor e empenho.

 
Dona Maria Olímpia teve a única filha sozinha na casinha humilde no bairro do Grajaú. Nasci em 1932 e nunca conheci meu pai, a velha história de ir comprar cigarros e desaparecer para todo o sempre era comum na época, minha mãe já costurava para vizinhas e amigas e nem o resguardo a impediu de atender suas freguesas.

Minha mãe era miúda e agitada, trabalhava dia e noite sem parar. Fui criada ao pé da máquina de costura, adormecia com o barulho das agulhas e tesouras, despertava com as trocas de medidas e ajustes. Ganhei  muitos presentes das freguesas generosas, todos gostavam do trabalho da minha mãe. Nunca perdia um prazo ou atrasava uma costura.

Pretinha e pequenina toda vestida de branco eu era um sucesso cada vez que saía as compras ou a missa aos domingos. Filha de costureira, precisava dar o exemplo no capricho dos moldes, esta  boa desculpa me rendeu sempre os mais lindos vestidos e fitas.

Quando comecei a estudar na escola do bairro percebi que ser negra me excluía de muitas coisas boas, não fiz amizades e não era convidada para os aniversários das coleguinhas.Sempre sozinha no recreio, certo dia por acaso encontrei um botão perdido no bolso, achei bonito e guardei na sacola.

Minha mãe não podia comprar presentes nem bonecas nas lojas de brinquedos, mas com sobras das roupas fazia lindas bruxas de pano. Eu era uma menina muito tranqüila e simples, tudo me alegrava. Vivíamos em uma vila de casas e a maioria dos moradores, eram bem idosos, única criança acabei ganhando muitos avós.

Acima de todos os objetos de costura do mundo maravilhoso de tecidos finos eu era fascinada por botões. Lindos, de todos os tipos e formatos, leves, pesados, de vidro, cristal, madrepérola ou forrados... Botões. Vivia catando os caídos e perdidos pelos cantos, minha mãe separava os mais bonitos e diferentes.

Uma freguesa atenciosa trouxe uma lata de bolachas vazia  para que eu guardasse meus tesouros. Fiquei felicíssima, dava voltas rodopiando com a lata nas mãos em uma valsa imaginária, feliz da vida... Esqueci as festas e amiguinhas, esqueci que era chamada de negrinha e  que a carteira ao lado da minha sempre ficou vazia... Esqueci até o dia dos pais que eu nunca comemorei.

Anos depois minha coleção de botões estava na  terceira caixa. Era o dia da minha formatura no Instituto de Educação, minha mãe só fazia chorar de alegria. Eu, a filha da costureira tirando diploma de professora, era demais para sua simplicidade. 

Houve cerimônia e recebi elogios  pois fui uma das melhores alunas, sempre com média alta e bons trabalhos. Planejava prestar concurso público, trabalhar bastante e tirar mamãe da vida sacrificada que levávamos.


Após a formatura ganhei um  bolo confeitado de uma freguesa abastada para o lanche de comemoração. Muitos vizinhos e amigos apareceram para festejar com pratinhos de doces e salgados. Estávamos felizes e eu usava o uniforme de normalista pela última vez.
 
Mamãe trouxe um imenso pacote enfeitado com  um laço vermelho tão lindo que senti pena de abrir o pacote. Dentro havia uma caixa finíssima de madeira toda trabalhada: _ para os seus botões minha filha.

Abraçadas sentimos que tudo seria diferente a partir daquele dia, a vida prometia muitas mudanças com meu futuro emprego, havíamos vencido uma etapa importante. Todos ficaram comovidos com a alegria de mamãe.

Coloquei minha coleção de botões no aparador da sala , incrível como Dona Maria sabia a história de vário deles: _ olha Judith, este dourado é da farda do Manoel, e este de rosinhas é do vestido de noiva da Filó, e aquele outro é do vestidinho de batizado da neta da Dona Ivone.
As vizinhas reconheciam seus botões e contavam histórias dos vestidos, bailes, noivados e recepções. Exatamente como eu havia imaginado.

O tempo passou, os anos voaram, fiz carreira e alcancei o cargo de diretora de escola, casei, dei netos para D. Maria Olímpia que nunca deixou de costurar. Já bem idosa, fazia roupinhas para orfanatos e compotas para as vizinhas adoentadas. Tinha um coração iluminado e um sorriso lindo.

Minha mãe. Após o enterro andei pela casinha vazia com o coração apertado de saudades. Abri as janelas e cortinas, deixei o sol entrar. As roseiras com certeza estavam sentindo falta da sua dona, muitas estavam murchas e mal cuidadas.

Após tantos anos encontrei  minhas latas exatamente do jeito que deixei  na velha sala de costuras, junto á máquina e o manequim de madeira. Tudo bem limpinho e cuidado, como se estivessem esperando o momento de entrar mais uma vez na minha vida.

Num impulso espalhei todos no chão e como um passe de mágica voltei à infância gostosa,  tocando em meus botões e imaginando mil histórias... Saudades do perfume de alfazema de mamãe e da sua voz calma cantando modinhas.
 
Pequenos botões amados que fizeram parte da minha história, trouxeram tanta alegria e distração mais uma vez cumpriam importante papel.
Trazer alento ao meu coração, botões, simples e pequeninos botões. Pedacinhos de lembranças.






( para minha avó Maria Benedita com todo amor do mundo e D. Maria Olímpia que inspirou esta história)

 Revisado por Sônia Claro
 

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 09/03/2008
Reeditado em 19/05/2009
Código do texto: T894255
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