Ismail acende outro cigarro, bebe o chá forte sem açúcar, murmura a despedida e sai apressado. A mulher que ajeitava o pequeno apartamento chora baixinho, mais um dia de solidão,silêncio e vazio. Sem telefone, parentes próximos ou amigos. Da janela avista a rua principal, prédios cinzentos e decadentes onde a poeira acumulada esconde alguma cor indefinida. Os alto-falantes anunciam as preces nas horas certas. Fileiras de tapetes no canto da esquina são usados para os homens professarem sua fé.

Aos vinte anos casada com um homem muito mais velho é apenas um vulto, caminhando pelo mercado de carnes,  o pesado véu negro oculta o rosto e o sofrimento, a  falta de esperança e sonhos.  Moscas pousam nos alimentos expostos, o pão descoberto, pó, calor, suor, insuportável existência.

Ismail chega tarde do trabalho, Aywa serve a comida em silêncio. Depois vão deitar e fazem um sexo frio e rápido.Dois anos de matrimônio e nenhum filho.Talvez ele tome uma segunda espôsa ou peça o divórcio. Ela treme de vergonha e mêdo de ser capaz de gerar uma criança.

Uma tarde o marido observa aquela tristeza bordando perdida em pensamentos distantes e convida-a para um passeio. Vão visitar a Torre da Cidade, a mais alta construção onde a visão do velho Cairo é ponto turístico obrigatório para visitantes de todas as partes do mundo.

Um senhor bem idoso pede a Ismail que tire sua fotografia com a família e manda a mulher levantar o véu para o retrato. Aywa sofre quando a jovem esposa revela o sorriso tímido, no máximo 16 anos, franzina e pálida , com uma criança pequena nos braços. Exibe o menino qual um tesouro. O homem sorri para a câmera visivelmente orgulhoso.

Naquele menina-mulher Aywa viu uma filha e o futuro. Ismail e o desconhecido conversavam alegremente e não perceberam a troca de olhar cúmplice entre as duas mulheres.
Um lampêjo de afeto, consolo, união, força, mulheres irmãs partilhando dores e compreensão, ''Olhos gentis, portal da alma'' a doce Aywa recorda algum poema esquecido. Sorri.
Cobertas por véus cada qual parte para seu destino. Resignadas.

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 11/02/2008
Reeditado em 03/12/2008
Código do texto: T855478
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