certa noite
“Mentiroso”, acusou. “Não”, indignei, “juro por Deus, eu tava lá também.” Ríamos, os dois. A conversa fluía naturalmente. Às vezes é assim, a gente dá sorte. E aí aquele momento em que nada é dito, apenas intencionado. Ela ajeitou o cabelo e sorriu pra mim. Eu só tava ali... Entre o estar e o ser, ela era. “Ei, olha lá, é a nossa vez”, apontou. “Como assim nossa?”, brinquei. “Ah, qual é? Vamos?”, ela perguntou, mas como quem convoca. Estendeu a mão. Segurei. Vinte mil repetições daquela cena, em todas eu seguraria a sua mão. E fomos. “Qual?”, quis saber. “Hmm...”, fiquei perdido entre tantas opções. “Sabe”, ela disse, “te falta convicção”. “Já me disseram isso”, respondi, cínico. “Bom, não eu...”
Comecei a ficar incomodado com a demora, ainda mais por ver o pessoal nas mesas ensaiando reclamar. “Qual delas então?”, quis saber. “Já sei. Curte Baden, né?”, especulou. “E quem não?”, estranhei. “Os que não sabem amanhecer...”, disse, como quem recita, “fecha os olhos e só sente!”. Obedeci. Na introdução de “Canto de Ossanha”, eu fui, sem medo de me arrepender, só querendo caber naquele infinito. Empunhei o microfone e cantamos juntos, a plenos pulmões, que “o amor só é bom se doer”.
O homem que diz "dou" não dá, porque quem dá mesmo não diz / O homem que diz "vou" não vai, porque quando foi já não quis / O homem que diz "sou" não é, porque quem é mesmo é "não sou" / O homem que diz "tô" não tá, porque ninguém tá quando quer / Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor / Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor...
Aplausos. Eles gostaram. Ela também. Era o que me importava. Segurou minha mão novamente num convite para saudarmos o público. Passei a adorar a textura da sua pele. E pensar que só nos conhecíamos, sei lá, há umas duas horas? Eu tava num outro bar quando ela chegou. Tinham uns babacas atrás dela, enchendo o saco. Dei só um gole e tirei um “a moça tá comigo, rapazes, algum problema?” não sei de onde e eles se mandaram ao ver que outros caras também queriam sugestão. “Sei me virar sozinha”, ela disse. “Aham, tô vendo...”. Agora estávamos os dois ali, num outro bar, do outro lado da cidade. Não conversamos sobre as minhas neuras ou os seus esquemas. Éramos só dois perdidos que se encontraram. Alguns causos, goles e baseados depois, já sabíamos o que precisávamos um do outro.
“Mais uma, vai”, fez que implorava, “eles querem...”. Concordei. Um casal na mesa da frente estendeu o litrão que acabava de chegar. “Mart’nália?”, propus. “Hmmm”, murmurou, me imitando, “gostei”. Fiquei ligeiramente encabulado, mas disfarcei: “ah, vá pra porra”. Gargalhamos até emendar um “hoje estou sozinho” que cabia aos dois até pouco tempo antes.
Juntos na mesma estrada / Atravessando a madrugada / Pra ver o sol nascer / E em nossa aurora perceber / A delícia de viver / Tudo que a gente sempre quis / Olhar nos olhos de alguém / E conseguir dizer: / Estou feliz!
Pouco lembro dos novos aplausos ou dos gritos da plateia, da conta sendo paga ou até mesmo do que comemos; apenas do primeiro beijo naquela boca linda, dela mordendo meu beiço e sussurrando um “quero você, preto” enquanto eu mordia seu pescoço e a apertava contra mim com um braço e com o outro enchia a mão com seu peito. Emburacamos a noite, fazendo de cada beco escuro o prenúncio do que só aquele quarto podre que encontramos depois finalmente testemunhou. Ela acabou comigo, como eu sabia de cara que faria. Quando acordei, nem procurei. Já não esperava que estivesse por lá. Carteira intacta, celular ainda lá, me vesti, paguei a conta e meti o pé. Em algum canto qualquer, Gal já tinha homenageado essas “mulheres que só dizem sim por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema e um botequim”. Àquela altura, a mim e todos os outros sonhadores, apenas o alerta:
E eu te farei as vontades / Direi meias verdades, sempre à meia luz / E te farei, vaidoso, supor / Que és o maior e que me possuis / Mas na manhã seguinte / Não conta até vinte, te afasta de mim / Pois já não vales nada, és página virada / Descartada do meu folhetim.