O Professor de Francês
Elas estavam em uma praça observando as crianças brincarem no playground, a apreciar o som dos pássaros nas copas das árvores e o jogo de dominó de um bando de idosos em uma das mesas próximas.
- Estou traindo meu marido, Alice – comentou Stela, decepcionada consigo mesma.
- Por que diz isso? – inquiriu Alice. – Você é católica. Uma das mais carolas. Duvido muito que esteja a fazer isso.
- Digo, não é uma traição física – comentou a outra. – É algo mais perverso, sórdido até. Tenho pensamentos intrusivos com um velho conhecido meu.
- E quem seria?
- Se chama Glauco – disse Stela, reticente. Vasculhou a bolsa, tirou dali um cigarro e acendeu-o. Ofereceu um a Alice – que prontamente recusou.
As duas ficaram um momento caladas. Stela baforou fumaça.
- É uma ligação estranha que tenho com ele. Não lembro ao certo quando e como nos conhecemos. Porém, eu já estava em um relacionamento com Alberto.
- Ligações estranhas temos com qualquer um – redarguiu Alice. – Eu acho aquele meu vizinho, o Carlos, excepcionalmente belo. Contudo, não considero que esteja traindo Valdir. São apenas pensamentos que nos acometem.
- O problema é que Glauco reapareceu. Assim, do nada, depois de tantos anos – exclamou Stela, com indignação.
- E o que tem?
- É que tudo aquilo que parecia ter arrefecido com o tempo, parece que voltou e mais forte.
Uma das crianças acercou-se, a entregar um brinquedo a Stela.
- E hoje todas as coisas são diferentes, sabe? Ele ainda tenta me ligar; quando ouço sua voz, sinto algo estranho. Parece que a cada dia a desejo mais perto. É de uma sensualidade ímpar...
- Não seria alguma paixonite adolescente que te arrebatou por estes momentos?
- Quem sabe...? Estou cansada dessa vida de Madame Bovary, entende?
- Toda mulher, quando chega a uma certa idade, precisa de uma aventura. Algo diferente.
- O que quer dizer, Alice?
- Você entenderá...
Naquela tarde, Stela estava incumbida de seus afazeres domésticos quando o telefone tocou.
- Já não te disse para evitar ligar em minha casa?
- Eu precisava ouvir tua voz – disse Glauco, do outro lado do telefone. – O que eu mais quero é te ver.
- Glauco, nós não podemos nos ver – interrompeu ela. – Hoje, sou uma mulher casada e com filhos. Não deveria nem mais te dirigir a palavra.
- Eu só gostaria de uma hora ou uns minutos com você.
- Para quê?
- Para te ver!
Stela hesitou um pouco. Ficou silente. Apenas ouvia o respirar de Glauco do outro lado da linha. Muito queria abraçar àquela ideia, mas pensava ser uma loucura.
- Hoje, às sete.
- O quê? – inquiriu ele, vide a forma abrupta com que ela irrompera o breve silêncio.
- Apareça em casa nesse horário – disse ela.
- E o teu marido?
- Ele nunca está em casa nesse horário – comentou ela. – E, aliás, às quartas-feiras ele sempre joga sinuca com os amigos.
Ela desligou o telefone e sentou-se em uma poltrona. Parecia meditativa. Tal atitude compulsiva fê-la temer um pouco. Tinha um encontro marcado com quem ela jamais pensaria rever algum dia novamente. Depois de cinco anos, Glauco voltava à sua vida como um furacão a devastar uma cidade. Pensou ela que, se algum dia viesse a escrever sua autobiografia, talvez fá-lo-ia com traços de roman à clef.
Adentrou o banheiro e banhou-se demoradamente. Ao sair, secou os cabelos e pintou os lábios com batom. Passou o lápis nos olhos – a última vez que o fizera fora dois anos antes para o casamento de uma prima distante que vivia no interior. Sentia-se bela outra vez. E com um motivo. Parecia que alguém realmente valia sua feminilidade. Sentia-se mais mulher. Jovem, sensual.
Colocou seu vestido vermelho – que lhe lembrava algum vestido de alguma personagem de algum filme de Almodóvar que ela esquecera o nome. O relógio marcava mais de seis e meia. Estava ansiosa para rever Glauco.
De repente, ouve um tilintar de chaves do lado de fora da porta. Súbito, Alberto entrou no apartamento. As crianças foram abraçar o pai. Stela olhou-o com surpresa. Os sobrolhos arqueados. Paralelamente, ele também a vislumbrou da mesma forma.
- Por que está tão... arrumada? Algo especial?
- E-eu... é... nada especial. Digo, vamos receber uma visita.
- Uma visita?
- Sim... um amigo meu, gay... de longa data. Foi meu professor de francês há alguns anos. Ele voltou à cidade e encontramo-nos por acaso no mercado.
- Interessante – comentou Alberto, desinteressado. Dirigiu-se à cozinha, abriu uma cerveja e sentou-se no sofá.
- E por que chegou tão cedo, querido?
- Amanhã é o início do feriado prolongado, lembra? Todos estão se preparando para viajar e coisas assim. O que tem para o jantar?
Stela começou a sentir nervosismo. Os minutos passavam como torrente. Ela escondeu-se atrás de uma porta e respirou fundo. A campainha soou.
Alberto abriu a porta e cumprimentou Glauco. Stela a tudo ouvia de trás da porta.
- Você que é o professor de francês?
- Professor de francês? – inquiriu Glauco.
- Sim, Stela falou um pouco sobre você – comentou Alberto. - Entre, sente-se.
Glauco sentou-se. Estava tentando entender o que o marido de Stela fazia em sua casa àquele horário. Havia dias que os espiava e, de fato, ele sempre chegava depois das dez da noite.
- Uma cerveja? – perguntou Alberto.
- Estou abstêmio, por ora – replicou Glauco.
Stela apareceu na sala com um sorriso que mal podia disfarçar.
- Finalmente vocês se conheceram – exclamou ela. – Glauco, este é Alberto, meu marido; Alberto, este é Glauco, meu querido professor de francês.
- Oui, oui – Glauco sorriu, a expressar o que de mais profundo conhecia da língua de Balzac.
- E como alguém que fala francês e recusa cerveja, certamente quer um vinho, certo? – perguntou Alberto.
- Trè bien – exclamou Glauco, a em seguida arregalar os olhos à Stela.
- Vou abrir um cabernet sauvignon excepcional – disse Alberto, a levantar-se e retirar-se para a cozinha.
Stela e Glauco estavam finalmente sozinhos. Glauco murmurou:
- Professor de francês? Você está maluca?
- É o que eu consegui pensar na hora!
- E você não me disse que ele chegaria mais tarde?
- Amanhã começa o feriado – redarguiu ela. – Não havia pensado nisso. Seus amigos foram todos viajar...
- Bela maneira de ele vir te dar atenção – ironizou Glauco.
Nesse ínterim, Alberto trouxe o vinho e três taças. Serviu-as.
- E você continua dando aula, Glauco? – perguntou Alberto, interessado.
- Não, não – replicou Glauco, a bebericar um pouco do vinho. Preferia merlot a cabernet. – Ultimamente me dedico a realizar traduções. Estou inclinado sobre um Maupassant inédito – disse ele, a tentar recordar-se de outros autores de língua francesa. – E você, a que se dedica?
- Eu trabalho com logística. Aquela coisa monótona de escritório. Nada demasiado.
- É uma vida interessante – comentou Glauco. – Antes a certeza de uma rotina laboral que a incerteza da consciência das palavras.
- Alberto é muito inteligente – predicou-o Stela, a beber seu vinho. – Foi promovido recentemente.
Glauco pareceu um pouco incomodado. Como se estivesse em posição de sentir-se enciumado da mulher.
- Glauco também é excepcional escritor, não é? Lembro-me que escrevia poemas muito melancólicos.
- Foi uma fase em que estava a ler bastante As Flores do Mal...
- Hugo? – perguntou Alberto.
- Baudelaire – replicou Glauco, prontamente.
- Sim, sim. Baudelaire. Estava na ponta da língua!
Fez-se um silêncio momentâneo na sala.
- E não temos nada para servir o convidado?
- Temos sobras do almoço – comentou Stela, a compor sua segunda taça de vinho.
- Sobras? Recuso-me oferecer sobras a um convidado tão elegante.
- Eu não me importo com quitutes...
- Jamais, aqui será muito bem recebido! Vou ao mercado!
Não demorou muito para que Alberto saísse. Talvez quisesse parecer ao convidado muito bem educado.
Dada a oportunidade, Glauco tomou a mão de Stela para si. Beijou-a. Foi a primeira vez que seus lábios encostaram em seu corpo. Passou a mão por detrás de seus cabelos depois de muito tempo. Somente o tato quiromântico havia sido sua experiência para consigo. Tentava entender o porquê de depois de tantos anos ainda havia algo entre si. Acercou seu rosto de Stela e beijou-a suavemente. Pareciam juvenis. Logo, as línguas se tocaram, então seus corpos. Como anjos, uniram-se nos poucos minutos que tinham para aproveitar o tempo perdido. Sob a embriaguez do vinho, sentiam-se um ao outro pela primeira vez. Quiçá fosse aquela a última, mas sabiam os dois que não havia tempo mais a se perder.
Recompostos, bebericaram mais uma taça de vinho. Entreolhavam-se silenciosos e curiosamente apaixonados. Da faísca deixada no passado surgiu uma chama esplendorosa.
Alberto voltou com alguns comes. Fazia comentários que pouco chamavam a atenção de Stela e Glauco.
Não demorou muito para que este anunciasse sua despedida.
- Eu espero que volte logo para mais um pouco de vinho – exclamou Alberto, a cumprimentá-lo e deixá-lo a sós com Stela.
- Eu prometo volver. Au revoir!
Stela levou-o até a porta. Ainda em silêncio. Ofereceu-lhe a mão. Glauco a segurou.
- Nós sempre teremos Paris – comentou ele, a rir.
Stela sorriu. Um sorriso de paixão. Despediram-se com um beijo silencioso e não mais saberiam se algum dia se veriam.
***
Stela despertou do sofá aquela tarde com uma ligação. Alice havia esquecido um colar consigo. Tudo não passou de um sonho. O dia seguinte seria feriado. Uma tristeza incomum se lhe arrebatou o peito. Havia dias que pensava em Glauco e não saberia quando encontrar-se-iam novamente.