O Presente de Ricardo
Ricardo é um cara que acha que sabe tudo. Daqueles que é difícil contestar.
Pra ele tudo na vida segue um plano. Cada passo que ele dá já havia sido traçado por algo maior. Chama isso de destino, sincronicidade, alinhamento cósmico... Júlia chama de outra coisa.
E já estava quase na hora de descobrir.
Ele entra no restaurante, ali no Santo Antonio Além do Carmo. Um cheiro de alfazema misturado com com flores do campo. Abre logo um sorriso confiante. Debaixo do braço um embrulho volumoso. O garçom o conduz até a mesa onde Júlia já o espera. Ela acena, ajeita o cabelo com um movimento despreocupado. Olha para o pacote e depois para ele, sem conseguir esconder a curiosidade.
— Oi meu bem! Já iniciei os trabalhos! (Batendo com a unha do indicador da mão que segurava a mesma taça) Ele olha pra ela e se dirige ao garçom:
— Opa, boa! Outro desses pra mim, por gentileza.
— Espero que isso seja comida — Júlia brinca apontando pro pacote.
Ricardo ri e acomoda cuidadosamente o pacote contra o lado da parede onde a mesa está encostada.
— Melhor que isso. Algo que me fez pensar em você.
Júlia ergue uma sobrancelha, pegando a taça de vinho, e dá um pequeno gole, tentando entender aquilo.
— Um presente?! Você sabe que a gente só trocou mensagens por algumas semanas, né?
— Sim. Mas algumas semanas podem significar muito.
Júlia toma outro gole e o observa por cima da taça. Fica uns dez segundos calada olhando pra ele e larga:
— Isso soa perigosamente como destino.
— Não acredita?
— Eu me matei de estudar para entrar na faculdade, fiz três estágios, aprendi francês porque exigiam na empresa dos meus sonhos. Você acha que isso foi destino? Eu prefiro acreditar em acasos e escolhas.
Ricardo sorri. Era sempre assim. Pessoas sem fé no destino eram apenas pessoas que ainda não tinham prestado atenção suficiente nos sinais.
— Ok. Eu te entendo, mas abra aí!
Ela rasga o embrulho como quem quer acabar logo com o suspense. Então fica imóvel.
Dentro da caixa, envolta em plástico bolha, está uma estátua de gesso de um anjo segurando uma lira.
Um silêncio constrangedor.
— Uau… — diz Júlia, tentando não parecer mal-educada. — É… sentimental.
Ricardo abre um sorriso largo.
— Você mencionou uma vez que gostava de música de igreja. Daí quando vi isso, pensei: é o presente perfeito!
Ela pisca, confusa. Nunca tinha mencionado gostar de música. Só pode ter sido outra pessoa?!
— É que… eu não sei nem onde colocaria isso — disse, buscando um jeito educado de não parecer ingrata.
Ricardo inclina-se, cheio de confiança.
— No altar.
Júlia sorri pra dentro, segurando com os lábios e tentando disfarçar.
— Todo mundo tem um cantinho do santo em casa, certo? - ele ainda completa.
Ela dá uns segundos para se controlar, encara o anjo, tentando entender se ele estava brincando. Mas não, Ricardo parecia genuinamente orgulhoso da escolha.
— Você sempre dá anjos de gesso para mulheres no primeiro encontro? — pergunta, num tom brincalhão e solta uma gargalhada alta.
Ele balança a cabeça.
— Só para mulheres incríveis.
— Uau, então eu sou incrível… com gosto diferenciado, né?
Ele ri, alegre, e ela gargalha. Júlia não consegue superar a estranheza do presente.
— Ricardo, eu tenho que perguntar: o que você realmente pensou quando comprou isso?
Ele apoia os cotovelos na mesa, animado, como se estivesse esperando exatamente essa pergunta.
— Foi um sinal. Você, eu, essa conexão que surgiu do nada…
— Do nada? A gente se conheceu num aplicativo de namoro.
— Sim, mas por que justo naquele dia, naquela hora? Naquele dia um passarinho que canta todos os dias na minha porta não veio, mas no dia seguinte tava lá. É um presságio. Poderíamos nunca ter nos encontrado. Mas em vez de ficar olhando o bicho eu entrei no aplicativo, e cá estou!
Ela ri.
— ô passarinho, rs, eu poderia ter dado match com um serial killer e estaria fugindo agora.
— Mas não deu. A gente está aqui.
— Porque escolhemos estar aqui, não porque estava escrito em algum lugar. (Ela volta a falar sério porque aquilo começa a ir longe demais)
Ricardo ergue a taça.
— Aí é que você se engana.
O garçom se aproxima para anotar os pedidos. Júlia aproveita a pausa para espiar Ricardo melhor. Ele é bonito, fala com entusiasmo, e tem essa crença inabalável em algo maior do que ele.
Ela gosta de homens com convicção. O problema é quando as convicções deles contrariam as dela. Ela pensa em ser didática.
— Você não acha que é meio confortável jogar tudo na conta do destino? — pergunta, enquanto o garçom se afasta.
Ricardo inclina a cabeça, interessado.
— Como assim?
— Se tudo já está escrito, por que tentar mudar alguma coisa?
— Porque o destino coloca as oportunidades na nossa frente, mas a gente é quem decide.
Júlia arqueou as sobrancelhas.
— Então voltamos à questão da escolha.
— Mas a escolha faz parte do plano.
— Isso soa conveniente.
Ricardo ri.
— Você nunca sentiu que certas coisas simplesmente tinham que acontecer?
Ela pensa por um instante e decide concordar, tem coisas na vida que parece que encaixam em determinados momentos, como a morte súbita da mãe doente e a mudança profunda em sua vida.
— Já. Mas acho que foi muito porque eu fiz acontecer.
Ele sorri, fica pensando por alguns segundos. Enquanto sorri não está sendo irônico, mas parece que já previa o que estava para acontecer. No instante que bebericam o vinho chega um músico de rua tocando violão próximo a eles. Júlia reconhece a melodia na mesma hora.
"Se você vê estrelas demais // Lembre que um sonho não volta atrás // Chega perto e diz // Anjo"
Seu rosto se ilumina.
— Ah pára.. você que aprontou isso, fale a verdade!
Ricardo abre os braços, triunfante.
— Eu?! Não é possível! Isso é a prova definitiva! Agora você tem que admitir que existe destino!!
Júlia franze a testa.
— Aham, sei..
Ele ri, balançando a cabeça.
— Você é impossível.
Ela inclina-se para frente, divertida.
— Me diga uma coisa, Ricardo. Fale a verdade, nós dois aqui, agora, ouvindo essa música era algo que precisava acontecer?
— Com toda certeza.
— E como você explica isso?
Ricardo sorri.
— Eu não explico Julia. Mas repare, eu sou o cara que acredita que vai dar certo, eu enxergo os sinais. E você… (pausa) …toca a vida como quer.
Júlia fica observando-o, tenta entender se aquilo era charmoso ou preocupante.
Ele tem uma crença genuína na forma como as coisas se desenrolavam.
E ela tem uma crença inabalável de que nada era inevitável.
Mas isso tinha uma graça. Ela não entende completamente tudo isso, mas sente.
Então pega a taça e ergue num brinde.
— Ricardo, foi um dos encontros mais estranhos que já tive.
Ele ri.
— Isso é bom ou ruim?
— Ainda estou decidindo.
Eles brindam. O anjo de gesso permanece ali, como testemunha silenciosa de um encontro tão peculiar quanto promissor. Mas Júlia já sabe que, dali para frente, a relação entre os dois será uma batalha entre destino e escolha. Isso é inevitável.
FIM.