Entre Suspiros e Brisas
A tarde avançava preguiçosa. A pequena casa de madeira, de cor já desbotada pelo tempo, se escondia entre as árvores do quintal, quase como se o verde tivesse engolido a construção ao longo dos anos. Era uma casinha simples, de janelas amplas e pintadas de branco, onde quase tudo tinha sido feito com muito todo o amor do mundo.. Nos dias de calor, as janelas permaneciam abertas, deixando o vento brincar com as cortinas, que dançavam em ondas que iam e vinham, sem pressa.
E hoje, de algum modo, parecia que tudo estava em harmonia. Sentada em uma cadeira de ferro no jardim, ela observava o espaço à sua volta, o pequeno refúgio que era seu mundo. Ali, havia um gramado que, embora não muito grande, era rico em detalhes e vida. Rosas pequenas, amarelas e brancas, cresciam próximas à varanda, e do lado oposto, uma goiabeira velha inclinava-se levemente, como se em uma reverência silenciosa, quase protetora, às memórias e segredos que a casa guardava.
Ela tinha cabelos longos e ligeiramente grisalhos, presos com um elástico simples na altura da nuca. Eles estavam presos de maneira simples, com um elástico velho na altura da nuca, mas alguns fios rebeldes escapavam, emoldurando seu rosto com a naturalidade de quem já não luta contra o tempo. Havia um charme sereno em cada detalhe de seu rosto: as rugas finas que se espalhavam ao redor dos olhos e da boca contavam histórias silenciosas, como se cada linha guardasse uma lembrança, uma emoção ou um sorriso guardado. Eram marcas de uma vida bem vivida, impressas com delicadeza sobre a pele.
Naquela tarde, vestia um longo vestido floral, leve e fresco, que tocava sua pele com uma suavidade quase nostálgica. O tecido era macio, como se tivesse sido usado e lavado dezenas de vezes. Cada fio impregnado de recordações de dias ensolarados e de sua juventude, que embora tão distante, ainda se fazia presente em pequenos momentos. Era um eco daqueles tempos mais leves, quando corria pelos campos. Ela fechou os olhos e inspirou fundo. Era raro ter um instante assim, em que nada precisava ser feito, em que o mundo parecia dispensar exigências. E ali, entre as sombras das árvores e o murmúrio do vento, deixava sua mente viajar por entre suas memórias. Talvez tenha sido o cheiro da terra úmida ou o movimento do vento, mas algo a trouxe para uma tarde de muitos anos atrás.
Viu-se deitada na grama, muito jovem, com o rosto virado para o céu, ao lado do pai. Ele segurava sua mão e a guiava pelo céu. “Veja as nuvens, minha filha. Olhe bem, tem uma forma ali. Vê?” A garota ria, fingindo enxergar alguma figura entre as nuvens. Não importava o que visse ou deixasse de ver. A presença do pai ao seu lado era o suficiente para se sentir segura, amparada e feliz Havia uma paz naquela cena que parecia intocável, como se o tempo parasse ali.
A brisa acariciou seu rosto, puxando-a aos poucos de volta ao presente. Ainda assim, ela manteve os olhos fechados, deixando que aquela sensação perdurasse por mais um instante. Durante alguns instantes, ela ainda segurava aquela mão imaginária, ainda ouvia o riso suave do pai, e era novamente uma menina, deitada na grama, sem preocupações, sem medo.
Quando abriu os olhos, o sol ainda lançava seus raios através da copa da goiabeira. Aquele jardim, repleto de flores e plantas de diferentes tamanhos e formas, era muito mais do que um simples quintal; era uma extensão dele, uma prova de suas mãos cuidadosas e do amor que ele dedicara a cada detalhe ao longo dos anos. Quantos vezes ela o observava pela janela, vendo-o inclinado sobre a terra, ajeitando com paciência a cerca de madeira ou podando os galhos mais rebeldes de uma árvore. Ele tinha um jeito meticuloso e, ao mesmo tempo, amoroso de lidar com o jardim, como se as plantas fossem antigas amigas que ele conhecia pelo nome e pelas manias. Cada flor, cada arbusto, cada canto daquele espaço contava uma história – pedaços dele, fragmentos de uma vida compartilhada em gestos silenciosos e rotinas de cuidado.
E por um instante, sentiu algo raro e puro: uma felicidade sem explicação, uma paz que parecia surgir do próprio chão, das suas raízes. Era uma sensação que não vinha de nenhuma grande realização ou evento especial, mas da simples constatação pela vida que tece e daquelas memórias que ainda estavam dentro dela. Era como se a presença do pai, aquela mão imaginária segurando a sua, fosse algo que ela carregava o tempo todo. Tão real quanto o mundo ao seu redor. Seus olhos marejaram, mas ela não sentia tristeza. O vento soprou novamente, fazendo as folhas das árvores farfalharem, levando consigo aquele sentimento. Era como um suspiro de despedida, mas que deixava um calor suave no coração.
Ela sorriu e ergueu os olhos para o céu, onde as nuvens passavam lentamente, formando e desfazendo formas que ela agora podia ver com clareza. Sentiu-se inteira. Sabia que aquele momento não duraria para sempre, mas a lembrança sim ficaria. Sabia que, embora passageiro, havia nela um lugar secreto onde poderia voltar sempre que quisesse. E esse lugar, descobrira agora, era o seu próprio nirvana.
Publicado em "O Nirvana que Existe em Mim", Editora Hope (01/2025)