POST IT - CONTO DE VERÃO: O ENCANTO DE LISBOA SEM FESTAS

“Ah o amor… que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.” (Luiz Vaz de Camões, 1570)

Antônio desembarcou em Lisboa com o coração na mão. Era a sétima vez que voltava. O primeiro encontro deu-se na primavera, em meados dos anos 70, no torvelinho de abril, em plena Revolução dos Cravos.

Conhecia bem a cidade: as pequenas praças, cada ruela e becos da Alfama, as tradicionais casas de comidas do Chiado, os museus, as margens do Tejo, o Rossio, a Praça dos Restauradores. Certa vez foi a pé do Terreiro do Paço até o Mosteiro dos Jerónimos, serpenteando as margens do Tejo. Porém, naquele dia Lisboa lhe pareceu uma cidade desconhecida. “Talvez seja mesmo”, pensou justificando aquela estranha perplexidade.

No banheiro do pequeno hotel, o mesmo de muitas estadas, percebeu que a "nécessaire" sempre pronta para viagens, estava só. Sobravam espaços na mesa da pia. Alguns fios de cabelos ainda presos na escova, há pouco familiares, lhe pareceram estranhos; intrusos a apontar algum sinal do que lhe restava de conexão consigo mesmo em passado recente, noutra viagem.

À noite, o corpo cansado não deixou que ele se recuperasse da noite mal dormida no assento da aeronave. Doíam-lhe os braços, os ombros, a alma inquieta. A insônia que o dominou assombrava-lhe os pensamentos. Assim acordou na cinzenta manhã daquela sexta-feira de novembro, que se anunciava nada promissora.

Logo ao sair do hotel, desviando de algumas poças d’água sob chuva manhosa, Antônio esteve perto de uma tragédia. Definitiva! Na travessia da Avenida Liberdade dois carros em alta velocidade, ambos pertencentes à Polícia Judiciária, se chocaram violentamente, e um deles veio em sua direção. Salvou-se por estar atrás de poste de iluminação, onde um dos veículos bateu e ficou destruído, resultando em quatro feridos graves. A vida é muito frágil, raras e tênues as garantias que temos para aproveitá-la. “Faiblaisse!”

Desceu da Liberdade assustado e semi catatônico em direção ao Rossio para fazer o que nem mais sabia o quê. Lembrou haver se sentido assim quando foi assaltado dentro de uma igreja em Barcelona. Agora, colhido e impregnado por sentimento difuso e misto de impotência, pequenez, fragilidade e desimportância, procurou não pensar em nada, abstrair daquele contexto; queria apenas caminhar lentamente sem ao menos se dar conta por onde andava. Logo viu-se na Praça dos Restauradores. Amparou-se na mureta de entrada do Metrô e ficou a olhar para os alpendres das casas, a observar as cores das janelas, as grades das sacadas, e, num átimo, deixou-se transportar para outra época, séculos XVIII, XIX; por aí.

Após algum tempo, perdido na fluidez desarranjada de muitos pensamentos vagos, seguiu por uma ruela à esquerda da Liberdade e atravessou a Porta de Santo Antão. Observou os grandes reclames na fachada do Teatro onde estivera há dois anos. Dirigiu-se à bilheteria na esperança de reencontrar o conterrâneo da mesma cidade natal que lhe vendera ingressos para com ele falar alguma qualquer coisa, deixar de ser por breves instantes um completo desconhecido, tão só se sentia naquela multidão. Esperança logo desfeita: uma senhora é que lá o atendeu. Restava seguir em frente. Foi o que fez.

Perambulou pelos arredores com parada para almoço/jantar na Pastelaria Suíça. Depois, subiu no elevador da Justa para o Chiado para um breve café com Fernando Pessoa. Circulou a esmo pela Praça Camões, o Teatro São Luiz, reparou no elétrico. Encostou-se em grade de proteção defronte ao Café A Brasileira, e ficou a olhar para o mundo de passantes à sua frente. Mais tarde, mesmo exausto, voltou a pé pelo mesmo caminho da vinda para castigar o corpo. Fazia muito frio. Hora de dormir. Estava assustado.

Na manhã de Sol preguiçoso, sem inspiração para outras aventuras, voltou ao Oceanário onde já estivera algumas vezes. Chovia. Isso o compeliu a ficar lá mais tempo do que gostaria. O peixe-pedra circulava lenta e tranquilamente como veículo sem combustível. Estacionou ali, e sentado em banco de madeira ficou a acompanhar por um bom tempo as evoluções contínuas e previsíveis dos peixes, até que lhe veio o sono. Acomodou-se e fechou os olhos embalado pelo fundo musical que simulava sussurros do mar.

“A vida é demasiada breve para desavenças tão longas. Fotos, fotos, fotos: fotos de coisas, paredes, janelas, gentes. Para quê? Estou buscando, garimpando razões para o que não tem explicação? Fico com vontade de ter raiva, mas nem mesmo sei de quem nem do quê. A inexistência é pior que morrer?”, indagou a si durante breve cochilo.

Hora de retornar. Chiado? Alfama? Bairro Alto, Rossio? Lisboa, Rainha do Tejo, à altura estava pequena para ele. Retornou ao Chiado onde o táxi o deixou. Desceu até o Rossio pelas ladeiras de escorregadias pedras centenárias, desviando de pequenas poças d’água. Serviu-se de outro breve café, seguiu com passos lentos e miúdos pela Restauradores e da Avenida Liberdade até o Hotel. Duas vezes o mesmo caminho já lhe parecia sofrida e burocrática rotina.

O sábado despertou devagarinho, preguiçoso. “Tempo nublado lá fora; frio no peito aqui dentro. O remédio é não pensar em nada. Andar, andar, andar... até não mais poder”, imaginou para aquele dia. Em seguida ao pequeno almoço no bar ao lado do hotel, Antônio ficou a observar as pessoas conversarem sobre futebol, o desastre do dia anterior, a situação da política, os males da poluição. Tal e qual na aldeia dele, mas outro o sotaque que o lembrava estar noutro universo.

“Quase sem amigos, vivendo numa cidade provisória, em situação temporária, que, no entanto, se prolonga não se sabe até quando.” (Alcione Araújo – Ventania, 2011)

Com o pensamento a vagar, desguarnecido de ânimos, retornou mais uma vez ao Rossio. E à mesa do mesmo garçom do dia anterior para buscar aconchego no reencontro com o único sorriso que recebera naqueles dias. O Rossio é o mesmo, mas quase nada diante da solidão que o invadira. Com os olhos semicerrados em meio ao indecifrável coral à capela do vai e vem dos turistas, Antônio, sem o perceber, murmurou baixinho na direção da cadeira vazia: “Vale a pena o Chiado, Pessoa, se minh'alma está tão miúda? De que adianta tanto navegar se não for para encontrar, descobrir, o que nem mesmo sei o que procuro? O sofrimento é necessário, depurador?”. Sem esperar pela resposta, levantou-se e caminhou pela Liberdade prometendo um dia voltar.

Vou voltar na primavera

E era tudo que eu queria

Levo terra nova daqui

Quero ver o passaredo

Pelos portos de Lisboa

Voa, voa que chego já

Ai se alguém segura o leme

Dessa nave incandescente

Que incendeia minha vida

Que era viajante lenta

Tão faminta da alegria

Hoje é porto de partida

(Kleiton & Kledir)

Muito mais tarde, noutro encontro às vésperas do Verão, junto à Torre de Belém, ao pé do Padrão dos Descobrimentos, pisando nos versos de Alberto Caieiro, Antônio teve consciência de que o Tejo era o rio de outra aldeia, não a dele. Inundado de novas esperanças guardou as sementes de lágrimas que ainda lhe afogavam a alma para derramar no pequeno fio d’água d’além-mar, que margeava a casa onde nasceu. Era o que mais pretendia naquele instante.

À noite, sonhando no entremeio de incontroláveis cochilos, viu-se ilhado num barco a vela que zarpara mar adentro lentamente ao sabor dos ventos. Antônio enxergava no rastro de popa a branca espuma que não se desfazia. Era o traçado do caminho para que num dia qualquer por ele pudesse regressar.

Queria não mais despertar. Conseguiu.

“Sailing on a summer breeze and skipping over the ocean like a stone.” (Harry Nilsson)

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(03/11/2009)