Foto do meu arquivo pessoal

 

 

 

 

O MEU LAR É ONDE TU ESTÁS...

 

 

Sentado no parapeito do calçadão, olhando a extenso areal até  à linha do horizonte definida pelo mar sempre um pouco agitado, Carlos refletia sobre os meses já passados na Figueira da Foz, terra da sua eleição e residência nos últimos tempos, por conta da sua colocação como professor efetivo de Matemática, no quadro de uma escola secundária local. O ser um dos dinamizadores do clube de Ciência nesse estabelecimento de ensino absorvia-lhe bastante tempo, mas o facto de ter um conjunto de alunos muito motivados para as aprendizagens era deveras aliciante. Outra das razões que o prendiam à escola era uma colega de Educação Física, também do quadro e que no dia de apresentação geral chocara com ele quando Carlos, distraído como sempre, comia à pressa um iogurte, espalhando um pouco sobre a camisa. Chamava-se Rita e desatara a rir da figura dele, com um riso jovial e simpático. A partir desse dia, sempre que se cruzavam nos intervalos ou para alguma reunião, o coração de Carlos batia de forma acelerada, algo que há muito tempo lhe era desconhecido.

Veio depois a saber que era treinadora da equipa feminina da escola, na modalidade de basquetebol, e também dinamizava em conjunto com uma colega de Português o clube de poesia. Como surpresa maior, soube depois que Rita era filha da senhora que lhe alugara o quarto onde ficaria todo o ano letivo, a D. Amélia. Este era modesto, mas situado em Buarcos, na saída norte da Figueira, um local que lhe agradara por ser perto da praia e bastante sossegado, embora algo distante da escola e do centro da cidade. Como ele gostava de caminhadas, todos os dias tinha de fazer pelo menos duas, de ida e volta,, o que cumpria sem custo.

Tinha trazido de Lisboa a sua viatura, um modesto Renault Clio, que estacionara num local perto da residência.

 

Nessa tarde, enevoada pois o clima ali era temperado pelo ar marítimo do Atlântico, inevitavelmente pensou nela e no agrado que lhe dera estar sentado ao seu lado, na última reunião intercalar que ambos tiveram. Fora há dois dias e ela mostrou-lhe a O.T. definida pela direção pedagógica da escola. Fora o ensejo para conversarem um pouco.

Soube que tal como ele era divorciada, mas sem filhos.

Era muito popular na escola, certamente devido ao seu caráter empático. 

Por várias razões, todas fortes, cada vez mais a admirava, ficando carente da sua atenção.

Claro que também pensava no seu filho, o Paulo, mas ele era muito autónomo, independente como a mãe. Cursava o último ano de Arquitetura no Instituto Superior Técnico e no final do ano letivo seguinte ficaria formado. Nunca lhe dera problemas, sempre fora um aluno muito aplicado e sem reprovações.

Suspeitava que Rita se sentia só, com muitos problemas para resolver. Possivelmente, tal como tantas pessoas, a sua alegria e boa disposição disfarçavam algo que ela não queria evidenciar... A doença do pai, o seu divórcio recente, que soubera por um colega lhe fizera muitos estragos, eram pedras no seu caminho.

Também ele sentia saudades de uma pessoa com quem convivesse, que lhe dissesse presente quando disso necessitasse. E não tinha dúvidas que Rita podia ser a tal...

 

Os dias foram passando, depressa chegou o Carnaval, férias demasiado curtas pois choveu todo o tempo, cancelando os desfiles e causando prejuízos aos organizadores.

Durante esses dias, fim de semana prolongado, Carlos quase nem saiu do quarto, exceto para tomar as refeições. Como a Figueira tem muitos restaurantes, para todos os gostos e bolsas, nunca teria problemas na escolha.

Tinha trabalho para por em dia, testes para corrigir, também o Clube da Ciência lhe tomava bastante tempo. Saíu o mínimo mas mesmo assim no domingo, depois do jantar, apanhou uma valente molha, que o deixou a espirrar.

No terça-feira de Carnaval deixou-se estar deitado, estava um pouco febril.

 

Quarta-feira chegou o sol e com ele todo mundo saiu à rua, tal como se fossem caracóis apanhando calor…

Carlos tinha Rita no pensamento, tornara-se uma obsessão, mas acreditava tratar-se de um sentimento só dele, e que se diluiria com o tempo.

Depois de almoço passeou de novo pelo calçadão mas nuvens ameaçadoras e uns quantos pingos de chuva convenceram-no a regressar ao quarto.

Não a viu na escola nem quinta nem sexta-feira, sentindo por isso alguma decepção.

Sábado à tarde viu Rita ao longe, empurrando uma cadeira de rodas com um homem de certa idade.

Resoluto, nem parecia dele, Carlos encaminhou-se ao seu encontro e cumprimentou-a jovialmente, traindo a alegria que o envolvera vendo-a.

- Então como estás?

Ela retribuiu o cumprimento apertando-lhe a mão que ele estendera. Rita apresentou o pai, uma pessoa franzina com ar debilitado pela doença,

Conversaram um pouco, caminhando lado a lado, até que ela disse ter de levar o pai de volta pois o tempo estava a arrefecer.

Foi com mágoa que os viu afastar-se na direção contrária à dele, mas depois também retornou o seu passeio.

Estava a ficar mais fresco e Carlos tinha pavor a constipações e gripes. Instintivamente lembrava-se do COVID e suas nefastas consequências durante dois anos fatídicos. Claro que a ameaça agora não era tão evidente, mas a gripe continuava a fazer estragos, e para ele seria desastroso, ali, sem qualquer apoio familiar. Além disso, ainda estava constipado...

 

Os dias decorreram na pasmaceira habitual, sem sobressaltos.

Carlos fazia a sua rotina diária, aulas, refeições, um passeio no calçadão quando o tempo o permitia.

Ultimamente poucas vezes via Rita, também embrenhada na sua própria rotina; o seu pai absorvia-lhe muito tempo e a mãe já não conseguia dar conta de todo o recado…

Num final de tarde de sábado, num tempo primaveril de Maio, Carlos viu-a entrar no café. Ele estava sentado a uma mesa de canto, junto à janela e perto da entrada, com a chávena de café vazia e o pires com migalhas do bolo recém-comido.

Rita olhou despreocupadamente à sua volta e vendo-o, dirigiu-se à sua mesa, cumprimentando-o efusivamente. Como sempre, Carlos ficou atrapalhado com a súbita presença dela, o que fez com que Rita sorrisse abertamente.

Ele levantou-se e ajeitou uma cadeira para ela se sentar, o que surpreendeu agradavelmente Rita. Carlos tinha um jeito que nem parecia dos tempos atuais, sempre muito educado e gentil.

- Então, apanhando o sol da tarde?

Ele respondeu-lhe de forma afetiva, transmitindo aquela sensação de agrado que Carlos sempre lhe causava quando se viam. - Pois sim, é bom levar um banho do astro-rei, após vários dias de chuva e vento…

- Como vai a escola?

- É a rotina do costume… Então e teu pai, como vai? E o resto da família?

- Vivendo um dia de cada vez, tal como todos nós…

Carlos olhou-a, condoído da sua situação. Ela não tinha tempo para nada, as aulas, o pai e as restantes atividades em que se tinha envolvido absorviam-na por completo, quase não tinha vida própria.

Rita percebeu o olhar carinhoso dele e instintivamente também sentiu o coração a acelerar, algo que já acontecera antes e não conseguia explicar. Por fim, ela   quebrou o silêncio:

- Então para onde vais concorrer no próximo ano letivo? Já decidiste?

Carlos olhou-a e ponderou a resposta antes de falar:

- Eu tenho razões para voltar à capital mas sinto que algo me prende à Figueira da Foz - e olhou para ela.

Perante o olhar dele, Rita captou a meiguice que ele lhe dedicava e nunca antes tinha percebido. Então ele disparou:

- Gostavas que eu ficasse?

Ela olhou-o e também se sentiu indolente quando respondeu:

- Gostava, sim. És um bom colega. És especial.

Carlos respirou fundo e olhando-a, de impulso, tomou-lhe a mão com carinho.

- Eu também gostava, agora posso dizê-lo.

Rita deixou a mão quente dele segurar na sua e nunca desviou o olhar.

- Eu gosto muito de ti, Rita. Desculpa-me dizer-te isto, mas diariamente, não me sais do pensamento.

Rita sorriu para ele e fez-lhe uma carícia no rosto.

- Se cá ficares, vais sentir saudades de casa, do teu filho.

- O meu filho posso vê-lo quando eu quiser, estou a menos de duas horas de carro da capital. Gostava sobretudo de estar mais tempo contigo, de conversar, de usufruir da tua doce companhia. E penso que ele também vai conhecer-te mais cedo do que imaginamos…

Rita sentiu-se mole, dengosa, estava a gostar de alguém mais do que imaginaria…

- És querido, sabes?

- Tu também és muito querida. Sabes? Descobri que o meu lar é onde tu estás… Amo-te!

Os olhos dela rasaram de água e muito emotiva, sussurrou:

- Também gosto muito de ti, mais do que imaginas…

Eles levantaram-se, Carlos foi pagar a despesa à caixa e assim que sairam, ele aproveitou o escuro, pois já tinha anoitecido há algum tempo, e afastaram-se um pouco das luzes. Então ele pegou-lhe suavemente no rosto e beijou-a, um beijo que pareceu demorar uma eternidade.

- Amo-te como nunca amei ninguém. E não é apenas paixão. És um amor de pessoa, Rita, e nunca te vou deixar…

- Eu também te amo, muito mesmo. És muito querido.

Ele envolveu-a pelos ombros e com passos miúdos, começaram a caminhar… Sentiam-se felizes pela confissão mútua.

 

 

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Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 01/02/2025
Código do texto: T8254680
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