O Peso do Não Dito
Alice estava sentada na poltrona da sala, o som abafado da chuva caindo lá fora, acompanhando o ritmo do seu respirar. Olhou para a janela e viu o reflexo de si mesma na vidraça molhada. Um vulto de alguém que parecia existir, mas que, ao mesmo tempo, se esvaía na opacidade do vidro. Ela conhecia bem essa sensação de ser, mas não ser de verdade. Como se estivesse sempre à beira de algo, mas nunca dando o passo que transformaria a intenção em realidade.
Pedro estava na cozinha. O barulho suave dos pratos sendo guardados no armário ecoava na casa vazia. Entre eles, as conversas rareavam com o passar dos anos, como se a intimidade já não precisasse de tanto esforço verbal. Mas, na verdade, havia uma profundidade oculta por trás desse silêncio que compartilhavam. A distância emocional era crescente, e Alice percebia isso a cada dia. Ainda assim, não havia palavras. Nunca havia palavras.
Ela lembrou-se de quando se conheceram. As conversas fluiam como cachoeiras e os sorrisos nasciam espontâneos e puros. Falavam de tudo, ou ao menos era o que parecia na época. Falavam sobre o mundo, sobre o futuro, mas não sobre si mesmos. Nunca se tocavam nas camadas mais profundas, No início, Alice acreditava que o silêncio era uma expressão de conforto. Uma linguagem sem palavras, onde a simples presença do outro já bastava. Agora, o silêncio era sufocante. Pedro entrou na sala com uma xícara de café. Sentou-se na cadeira de sempre, não muito longe dela, mas longe o suficiente para que seus mundos internos continuassem desconectados.
— A chuva está forte, né! — disse ele, quebrando o silêncio como quem joga uma pedra num lago calmo.
Alice assentiu, sem desviar o olhar da janela. Poderia ter respondido, poderia ter comentado sobre o tempo, sobre como a chuva lhe trazia uma melancolia constante, mas manteve-se quieta. Havia tanto não dito entre eles que qualquer palavra agora parecia irrelevante. Sabia que, em algum ponto, a relação havia se partido, mas não conseguia apontar o exato momento. Talvez tivesse sido uma série de pequenas fissuras, como rachaduras imperceptíveis num espelho que, de repente, se estilhaça sem aviso.
— Você está bem? — Pedro perguntou de repente, num tom que parecia ensaiado, como se já soubesse a resposta que receberia.
Alice sentiu uma pressão no peito, uma onda de palavras não ditas querendo romper a barreira que ela mesma tinha construído. Por um momento, considerou dizer tudo. Dizer que estava cansada de viver na superfície, que ansiava por uma conexão verdadeira, que o silêncio entre eles estava lhe corroendo por dentro. Queria falar sobre as noites mal dormidas, sobre os medos que carregava, sobre a solidão que sentia mesmo estando ao lado dele.
Mas não disse nada disso. Não porque não queria, mas porque não sabia como. As palavras estavam ali, mas pareciam fragmentos soltos, sem forma ou ordem, impossíveis de serem costurados em algo que fizesse sentido. Em vez disso, ela apenas assentiu, uma vez mais, a resposta mais fácil e mais destrutiva que poderia dar.
— Estou bem, sim!
E com essa mentira, sentiu que mais um pedaço dela se quebrava. Pedro suspirou, levantou-se e foi para o quarto, deixando para trás o eco de um diálogo que nunca aconteceu.
Alice ficou ali, sozinha na sala, olhando para a janela e para a própria imagem borrada no vidro. Ela sabia que esse vazio não era exclusivo dela. Todos carregam seus silêncios, suas palavras não ditas, suas verdades não reveladas. Sabia que o silêncio, de certa forma, era uma escolha. Uma escolha de manter a paz, de evitar conflitos, de não encarar os fantasmas que assombram cada ser humano. Mas sabia também que esse silêncio estava, aos poucos, roubando a sua essência.
Ela se levantou lentamente e foi até o espelho do corredor. Olhou para si mesma como se estivesse vendo outra pessoa. Os olhos, antes brilhantes de curiosidade, agora eram opacos, cheios de um cansaço que ela não reconhecia. Tocou o próprio rosto, sentindo a textura da pele que, de alguma forma, parecia diferente. Mais áspera. Mais dura. Afastou-se do espelho, sentindo uma estranha repulsa pelo que via. Não por sua aparência física, mas pela mulher que tinha se tornado.
Voltou para a sala, e mais uma vez se sentou na poltrona. O som da chuva havia diminuído, e agora só restava o gotejar suave das últimas gotas sobre o telhado. O silêncio era quase total, exceto pelo som ritmado do relógio na parede. Tic-tac. Tic-tac. Uma batida constante, lembrando-a de que o tempo passava, implacável.
De repente, sentiu um impulso. Um desejo urgente de romper aquele ciclo, de quebrar o silêncio antes que fosse tarde demais. Levantou-se de novo, desta vez com mais decisão. Foi até o quarto, onde Pedro estava deitado, folheando um livro sem muito interesse. Ele levantou o olhar quando ela entrou, surpreso por vê-la ali, com uma expressão diferente. Havia algo em seus olhos que ele não conseguia identificar, mas que o fez fechar o livro, deixando-o de lado.
— Pedro — ela começou, a voz mais firme do que esperava. — Precisamos conversar.
Ele a observou em silêncio, como se aguardasse o desfecho de algo que já vinha sendo preparado há tempos.
— Eu… eu não estou bem — confessou, sentindo as palavras saírem com uma dificuldade imensa, como se estivessem trancadas em seu peito há anos.
Pedro não disse nada, mas seu rosto mudou. Havia uma vulnerabilidade ali, um reconhecimento de que aquilo que estava por vir poderia mudar tudo. E, ao mesmo tempo, havia medo. O medo do desconhecido, do que seria revelado, do que não poderia ser mais ignorado.
Alice respirou fundo, sentindo o peso da escolha diante dela. Poderia voltar atrás, se calar novamente, deixar que as coisas continuassem como estavam. Mas sabia que isso significaria a morte de tudo o que ainda restava entre eles.
— Eu sinto que estamos nos perdendo — ela continuou, a voz embargada. — Sinto que há tanto que não dizemos, tanto que deixamos de lado por medo, por comodidade… E isso está nos destruindo.
Pedro baixou o olhar, e o silêncio se instalou entre eles mais uma vez. Mas desta vez, era um silêncio diferente. Um silêncio que carregava em si a possibilidade de mudança, de transformação. Alice esperou, sentindo o coração acelerar. Sabia que o momento era crucial. E então, Pedro levantou o olhar, seus olhos encontrando os dela, e o que viu foi compreensão.
— Eu também me sinto assim — ele confessou, a voz baixa, mas firme. — E não sei como consertar isso. Mas quero tentar.
E naquele momento, o silêncio finalmente se quebrou.
Publicado em "O Silêncio que Ecoa em Mim", Editora Hope (11/2024)