O Tango
Ao som do belo tango o casal rodava pelo salão em passos precisos, executando um espetáculo que atraía todos os olhares. Stella, lindíssima em seu vestido preto de decote ousado, costas desnudas e uma fenda que deixava ver suas pernas torneadas e perfeitas, sapatos de salto agulha, cabelos presos em um elegante penteado, maquiagem perfeita. Nos braços, no pescoço e nas orelhas jóias que eram valorizadas pela pele sedosa e macia. Seu par a conduzia com maestria e a execução sensual e elegante encantava.
Do outro lado, Sérgio olhava. Estava sempre ali olhando, admirando. Vez ou outra ela olhava em sua direção. Fingindo-se de indiferente, seus olhos brilhavam de paixão e encanto. Sozinho, parecia distante. Seus pensamentos estavam longe. Todas as vezes que a via dançar pensava que depois da apresentação, quando ela abrisse espaço para uma dança com outros homens, ele se aproximaria. Aprendeu dançar tango pra não fazer feio, mas a coragem nunca era suficiente. Sabia que era uma mulher fria e distante. Até seu olhar era vazio.
Finalmente Sérgio se aproximou e a convidou pra dançar. Ela rodou o salão em seus braços e se admirou por ele dançar tão bem. Ele se sentia tremer ao tomar nos braços aquela mulher que povoou seus sonhos por tanto tempo, mas ela parecia indiferente. Sentia o momento e nem disse uma única palavra. Depois da dança ele se afastou e ela se sentiu um pouco decepcionada. Outras vezes ele a tirou pra dançar. Até que a chamou pra sentar e tomarem um drinque e Stella acabou bebendo um pouco demais.
—Você é uma perfeita escultura de Deus. Tão linda, toda linda. Não me canso de te olhar, de te admirar.
—Minha mãe sempre falou que minha beleza era minha perdição. Que a culpa pelos homens me tomarem era minha. Que minha beleza fazia os homens perderem a cabeça. Hoje eu gosto que eles percam a cabeça e que não possam me ter. Eu só danço tango, uma dança sensual, para vê-los enlouquecidos e não poderem sequer me tocar.
—Sua mãe dizia uma coisa desta? Como pode? Nenhuma mulher nunca é culpada por um homem a desrespeitar. Por mais linda, sensual e provocante que seja, o homem não pode ultrapassar o limite do permitido.
—Para ela eu sempre era culpada por minha beleza, pelo meu corpo que sempre chamou a atenção de todos os homens como se eu fosse predestinada.
—Bobagem. E por que não quer que nenhum homem te toque?
—Tenho meus motivos. — ele foi dando corta e tentando puxar a língua dela
—É estranho. Quando você me olha me parece que você me quer.
—Não quero. O que você quer é me usar, me abusar. Todo homem só quer isto. Eu só desperto os instintos mais primitivos, mais selvagens e violentos nos homens.
—Não entendo por que você diz isto. Não sou homem de desrespeitar uma mulher. Gosto e dou muito carinho. É assim que tem que ser entre um homem e uma mulher— ela já bebeu muito e começa a chorar e falar
—Meu pai era um homem alegre. Gostava de música, de cantar, de dançar. Ele me ensinou dançar o tango quando eu tinha quatorze anos. Ele gostava de me ver dançar, de dançar comigo e eu ficava cada vez melhor. Um dia ele começou a tocar meu corpo, eu tentava me libertar dele. Ele me prendia, tirou minha roupa eu lutava, mas ele era muito mais forte que eu e acabou me violentando, tirou minha virgindade, minha inocência, me machucou, marcou minha pele. Quando minha mãe chegou eu ainda estava caída na sala e meu pai dormia no quarto. Como havia testemunhas, meu pai foi denunciado, foi preso e de desgosto acabou morrendo pouco tempo depois na prisão. Minha mãe nunca me perdoou, achava que eu era a culpada por ficar me insinuando com aquela dança sensual e por ser tão linda. — ele estava completamente perplexo e ela continuou, como se precisasse colocar toda aquela podridão pra fora, mesmo que fosse com alguém que conhecia há pouco tempo.
—Menos de um ano após a morte de meu pai, minha mãe já tinha um namorado. Eu notava seus olhares de cobiça pra mim e tentava me esquivar. Se minha mãe soubesse não me perdoaria. Passado algum tempo aquele monstro me pegou à força e me estuprou. Minha mãe me culpou, não denunciou o pervertido e me mandou morar com minha avó. Ele ficou como o inocente e eu como a vagabunda que seduz os homens. Eu tinha apenas dezessete anos. — ele escutava e nem conseguia acreditar que fosse verdade, mas sabia que provavelmente era.
—Aos dezenove anos eu me apaixonei. Ele era um homem encantador e eu pensei que pudesse ser feliz. Dois anos depois, nos casamos. Mas ele não passava de um monstro que me violentava todos os dias, me machucava e ainda se fazia de santo. Ninguém acreditava em mim. Eu era a ruim e que não dava valor a um marido tão bom. Passei quase oito anos casada com aquele monstro até que ele morreu.
—Morreu? O que houve?
—Não importa. O importante é que me livrei do traste e ele me deixou bem, amparada. Desde então quase sete anos se passaram e eu jurei que nenhum homem jamais vai voltar a me fazer nenhum mal, jamais vai me tocar com violência e como sei que todos só querem me forçar, eu não permito que nenhum me toque. Aqui neste lugar eu vejo a expressão selvagem dos homens me olhando e me cobiçando e me dá prazer saber que não vão me ter.
—Como pode pensar que todo homem sempre quer te fazer o mal ou te violentar?
—Como posso pensar diferente se todos os homens que deviam me proteger, me cuidar, garantir minha segurança, me fizeram o mal, me violentaram, me machucaram, me feriram no corpo e na alma? Como posso confiar em alguém se minha própria mãe me culpou pelo ato de violência dos homens contra mim. É algum crime ser bela, ter um corpo perfeito? Eu não tenho culpa de ter nascido assim. Eu sou assim. Minha própria mãe me convenceu da minha culpa, ela tinha ciúmes da minha beleza.
—Nem todos os homens são ruins ou querem te fazer mal. Eu entendo que você pense assim. Mas você não pode perder sua vida com medo de todos. Precisa se curar dos traumas e voltar a viver. — ela riu sarcástica.
—Eu vou embora. Não quero olhar pra você com nenhum carinho ou sentimento. Você é apenas mais um homem.
Ela saiu meio trôpega. Ele foi atrás e a levou em casa sem tocar um dedo nela. Sérgio sempre ia lá, dançava às vezes, outras só olhava ou conversava com ela tentando ajudá-la. Estava apaixonado, mas sabia que ela precisava se conscientizar de muitas coisas. O tempo foi passando e ele tentando de todas as formas ajudá-la. Conseguia alguns avanços e em outras ocasiões ela se deixava perder em suas dores e sofrimentos. Até que ele começou a se fazer de indiferente. Ficava por ali como quem não quer nada, apenas apreciava o ambiente. Ela foi se sentindo apaixonada por ele e com medo de perdê-lo, mas sem saber se queria correr o risco de outra decepção, sempre hesitava.
Ela chegou em um vestido vermelho, muito justo e decotado, sensual e provocante. Esmerou-se ainda mais na maquiagem, cabelos, batom bem vermelho, acessórios em rubi, sapatos muito altos. Dançou e neste dia levou os presentes à loucura. Depois saiu em direção à Sérgio e o puxou pela gravata o levando para dançar. Rodaram pelo salão. Corpos colados, olhos nos olhos, mãos se tocando. No final ela o beijou. Um beijo que arrancou aplausos de todos. Sem dizer uma palavra saíram do recinto juntos.
Ela nunca mais dançou tango. Ele nunca mais pisou ali.
Aprenderam juntos a melhor dança de todas, a dança da vida.