Paixão

Ele segurava a caneta como quem tenta acender um cigarro sem fogo, as mãos tremendo sob o peso de algo maior do que ele conseguia entender. Seus olhos varriam a mesa, tentando fugir das palavras de Daniela, que o observava com uma calma imperturbável, como se estivesse assistindo a algo que já conhecia o final. Os olhos verdes de Daniela eram como pedras preciosas, frios e inquebrantáveis, mas de vez em quando, ele jurava ver neles uma faísca, uma centelha vermelha que queimava por baixo da superfície.

No início, ele era luz para ela. Uma luz quente e acolhedora, preenchendo os espaços vazios de sua alma. Mas com o tempo, aquela luz foi se tornando insuportável. Ela se tornara como um vaso florescente que, aos poucos, se enchia demais até estourar. O amor foi substituído por rancores e mágoas que, antes, eram apenas ecos distantes. Ele parecia estar no controle, movendo-se com uma calma arrogante, como se nada pudesse ameaçar sua posição. Mas ele não passava de um caminhão desgovernado, seus gestos atropelando qualquer expectativa de continuidade.

Quando o copo caiu e se estilhaçou no chão, o som do vidro quebrando soou como um aviso, um sinal de que algo havia se rompido ali, além do simples objeto. Ela não se mexeu, mas seus olhos o seguiam, cada movimento dele parecia desafiar uma ordem invisível. Ele se agachou para recolher os pedaços, os movimentos desajeitados contrastando com sua frieza. Algo se quebrava naquele momento, mas não era apenas o copo. Havia uma tensão crescente no ar, quase palpável, que os envolvia. Ela não o olhava diretamente, mas seus olhos o observavam atentamente, estudando cada gesto, cada respiração mal dada. Ele não sabia, mas ela via tudo. "Ele não me quer", pensou, e aquele pensamento foi o suficiente para que o vazio dentro dela se expandisse. Mas a dúvida também a corroía, a pergunta que se repetia incessantemente: será que ele realmente a via, ou estava apenas vendo a si mesmo?

Na hesitação, uma lembrança a invadiu, rápida e confusa. Ela viu, como em uma visão, um menino que precisava ser amamentado, aquela necessidade crua e exposta, e ele ali, com aquele olhar impassível. Ele não via a vulnerabilidade dela, não via a necessidade, apenas o controle que impunha a tudo ao seu redor. Daniela engoliu em seco, o repúdio misturado com uma dúvida amarga, como se ele fosse um monstro que a observava com um olhar que a desconsiderava como ser humano. Ela percebeu o sorriso involuntário que ele fez ao contar os azulejos da parede, e isso fez seu estômago revirar. Ele pensava que ela não percebia, mas ela via tudo, cada detalhe, cada respiração mal dada, cada movimento disfarçado. "Ele não me quer", pensou, e isso foi suficiente para sua pulseira de contenção estourar. Mas a dúvida também a corroía, se ele realmente a via, ou se apenas se via a si mesmo, como sempre.

O apartamento, com suas paredes brancas e vazias, o ambiente impessoal, não refletia apenas a solidão de ambos, mas a desconexão que cada um carregava consigo. O silêncio entre eles se expandia, crescendo como uma sombra, abafando as palavras não ditas. Ela, com a calma de quem sabe o que está fazendo, percebeu como ele se distanciava mais e mais, como se sua presença o incomodasse. "Você que sabe", ele disse de novo, sem convicção, e ela quase sorriu, sem mostrar. Ele queria, mas não queria. Ou talvez quisesse e fosse incapaz de admitir.

Ela se levantou, com a graça de uma bailarina que sabia exatamente o que estava fazendo, mas algo ali parecia calculado, estudado. Ele a seguiu, inconsciente de que estava sendo guiado por algo mais forte que seus próprios desejos. Ela o empurrou para o corredor, e o momento parecia durar uma eternidade, uma pausa no tempo. Ela hesitou por um segundo, apenas um segundo, mas isso foi o suficiente para que o silêncio preenchesse tudo ao redor. E se ele soubesse? A ideia a paralisou por um momento. E se ele percebesse o que ela estava fazendo, o que estava prestes a fazer? A paralisia se transformou em um sorriso nervoso, como uma máscara que escondia o prazer crescente dentro dela.

Lembrou-se do dia em que bateu o dedo do pé contra a mesa de centro, a dor aguda que a fez gritar e jogar o móvel pela janela. Uma liberação instantânea. O choque foi tão grande que ela sentiu, pela primeira vez, o alívio da libertação. Os vizinhos olharam assustados, suas bocas abertas em espanto, mas ela não pôde ignorar a adrenalina que a invadiu, os arrepios que percorriam sua pele. Agora, novamente, sentia essa tensão, a mesma mistura de prazer e vingança, e sabia que não poderia mais voltar atrás. Seu corpo tremia, mas o prazer era mais forte que o medo.

Quando ele finalmente a olhou, ela entendeu. Ele não a queria. Ele nunca a quis. A palavra "estupro" saiu de sua boca como um trovão, quebrando a calma da noite, e o peso daquilo era algo que ela sabia que nunca mais poderia apagar.

Ele a olhou atônito, mas ela já não o via. Ele não era mais um homem. Era apenas o reflexo de tudo o que a feriu. Ela viu, pela primeira vez, o poder nas palavras, e aquele poder preencheu o vazio que a acompanhava há tanto tempo. O que ela estava fazendo não era sobre vingança. Era sobre controle, sobre finalmente ser vista. Ela o faria pagar por aquilo que lhe causou, ou, pelo menos, faria ele acreditar que não poderia viver sem ela.

A polícia chegou, mas a verdade que ela acabara de criar se espalhou como uma sombra. O vazio dentro de Daniela, aquele vazio que a acompanhava por anos, começou a se preencher com o que ela jamais imaginou: poder. A vingança se transformava em algo mais, algo que ela nunca soubera que precisava. O prazer não era mais sobre o ato físico. Era o controle finalmente conquistado, o espaço tomado de volta.

Ela olhou-se no espelho, os olhos agora mais vivos do que nunca. Não sorriu, mas o poder em sua expressão era inegável. O fogo da vingança queimava em seu interior, e ela sabia que esse fogo a aqueceria por um longo tempo.

Erogat C
Enviado por Erogat C em 25/12/2024
Reeditado em 03/01/2025
Código do texto: T8226813
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.