Meu sítio, um lugar
Cansado da vida em uma cidade grande, cheia de ruídos, turistas e barulhos, ele resolveu mudar-se. Deixa para trás os veículos, o fluxo intenso de pedestres vindo da praia, cheio de areia e maresia grudada em seus corpos seminus, nessa enorme lassidão que abunda as pessoas, ao saírem da praia, em algazarras. Muita confusão para quem gosta de paz e reflexão, o fez desistir da cidade grande. Essa cidade já o angustiava há muito tempo, com todo esse alarido, seus semáforos, muitos carros e motos acelerando continuamente, com buzinas estridentes, com tanta poluição sonora, visual e atmosférica. Cansado de tudo isso e da beleza da praia retorcida por tantos exploradores histéricos, ele sonhava deixar-se levar para outras paragens, onde houvesse paisagens abertas, possibilidades de leituras silenciosas, contemplações. Buscava um recomeço longe desse céu cinzento, dessas noites sem estrelas.
Ele, vamos chamá-lo de João, sentia-se encarcerado nesse universo de aglomerações, de insegurança social, de violência urbana, de desrespeitos dos turistas com a cidade, do caos do trânsito, quase sempre frenético. Tudo isso, fazia-o reverberar seus sonhos de mudança. O que antes era um efêmero propósito, passou a ser uma necessidade urgente!
Diante da aposentadoria, nada mais restava fazer nessa cidade caótica. Foram 40 anos de labuta diária, corrigindo provas, preparando aulas, orientando alunos de graduação e pós graduação. Uma competição frenética e desnecessária com seus colegas. Agora, já cansado, com mais de 60 anos, ele apresentava uma degradação incontestável, lenta e incontida de seu físico. O cabelo caiu, a barba embranquecei, algumas discretas rugas, problema na próstata, um colesterol que teimava em continuar alto, apesar da alimentação saudável, com legumes, frutas, nenhum enlatado ou embutido, pouquíssimas bebidas alcoólicas e caminhadas frequentes como atividade física diária. Tudo isso fez João repensar o significado da vida, que levara durante o tempo de empregado, lutando para obter seu ganha pão de cada dia.
Chegou a hora de reinventar, de redefinir e de ressignificar. Entendeu que, na vida, devemos primar pela concisão. Não se necessita de muito para ser feliz. Não necessitava de muitas pessoas, muitas coisas e que o bem mais precioso é o tempo. Não adiantava coisas e dinheiro sem tempo e saúde para gozar os últimos momentos que restavam da sua vida.
João buscou um lugar interiorano, calmo e que o deixasse refletir, sem os atropelos que as cidades grandes nos ofertam. Levou sua irmã, Maria, com a generosidade que essa ofertara ao longo desse convívio, sem crítica mais severas, sem alardes, sem intromissões profundas...
Mudou-se! Sua irmã Maria, que sempre o acompanhara pela vida, exercia diversas funções na casa, diante da ausência de empregadas para realizar as atividades domésticas necessárias. Em companhia do irmão ia envelhecendo sem revoltas, nem desgostos ou maiores desejos. Maria era uma bela velha, com um corpo médio, uma tez que já anunciava aquela pátina da grande velhice, um olhar tranquilo e calmo, além de muita candura. Ambos, João e Maria, tinham ar saudável e apresentavam perspectiva de uma vida longa, talvez pela existência calma e regrada.
Esse lugar, que João escolheu, tinha um aspecto tranquilo. Com relvas macias, a vastidão do céu, as árvores farfalhando, um lago de água fresca, onde se podia respirar livremente, inspirando o ar revigorante de um lugar ermo e aconchegante. A casa erguia-se sobre uma espécie de degrau, formando a subida para uma pequena colina. Na frente tinha uma planície que se espraiava em direção a uma montanha. Havia um amplo horizonte. O lugar não era feio, tinha uma pequena cachoeira, não muito distante, para as bandas das montanhas. A água estremecia na queda, pulverizando-se em uma grande bacia de pedra...
Após tantos anos de labuta em uma cidade grande, veio a morar nesse recanto que denominou de “Um lugar”. As primeiras semanas que passou no seu recanto, ele as empregou numa exploração meticulosa de sua propriedade. Observou um certo abandono do lugar e começou, junto com seu ajudante, Antônio, a limpar o solo. Logo ao amanhecer iam de enxada ao ombro ao campo, para as primeiras empreitadas. Claro que ele não tinha a experiência nesse tipo de lida. Foi preciso muita paciência do seu ajudante para ensiná-lo as nuances desse empreendimento. Carpir parecia algo muito simples, mas requeria certa habilidade, foi o que constatou. Depois de um certo tempo, ele já conseguia capinar regularmente, sem aflições, diante das ingratidões da sua terra.
Comiam juntos, João e Antônio! Buscavam uma sombra fresca. Algumas vezes sentavam-se embaixo de uma frondosa mangueira e passavam um tempo comendo, descansando e conversando sobre as lidas e os projetos para esse pedaço de terra.
Antônio era uma pessoa de fala mansa, trabalhava incansavelmente. As reminiscências que lhe ficaram se faziam confusas, sem saber sua origem, ainda que africana, mas sem o exato local para recordar seus ancestrais. As origens da sua família datam da época do eito e das senzalas. Antônio exerceu atividades profissionais em fazendas, com funções na lavoura e na criação de gado. Ele foi criado nessa região. Cresceu acompanhando a violência e as crueldades dos patrões para com os seus. Sempre sentiu na pele a existência do racismo e do profundo abismo social vigente nessa região onde vivia. Foi uma época de perverso e silencioso preconceito existente em relação ao negro. Após o fim da escravidão, se estabeleceu nessa região, trabalhando para a manutenção de sua família.
Muitas vezes, principalmente no final de semana, se via João a passear a margem de um pequeno riacho que corria próximo a seu sítio. Ele ali se sentava, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crepúsculo. Ao entardecer, depois de ler um pouco, João saía vagarosamente de casa e encaminhava-se para a vila a dar dois dedos de prosa com as pessoas que encontrasse pelo caminho. Assim passava algumas horas do seu descanso, principalmente no final de semana.
Caminhava pelos campos em percursos erráticos e cheios de devaneios, algumas vezes se detendo no caminho a escutar os pássaros o qualquer movimento nesses caminhos. Muitas aves esvoaçavam em seu sítio, muitos pássaros, principalmente rolas pardas e caboclas em bando, mariscando no chão capinado, diversos outros pássaros se reuniam piando, cantando, chilreando pelas altas mangueiras, pelos abacateiros...
Do seu sítio à vila, percorria-se 10km, através de uma estrada simples, sem asfalto ou uma trilha, que subia e descia morros, cortava planícies e rios em toscas pontes. Era um pequeno vilarejo, de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica. Tinha duas ruas principais. Delas partiam as ruelas, onde se juntavam urbanamente as casas, que ao longo do percurso iam-se espaçando até acabar em campo. A vila era composta de uma igreja, um pequeno comércio, uma escola voltada para o ensino fundamental e médio. Também havia um consultório médico.
Além das lidas no sítio, João possuía uma biblioteca na sua casa. Gostava de poesia, além de literatura universal e portuguesa. Para não se afastar totalmente do contato com os jovens, buscou a única escola do vilarejo e ofereceu-se para auxiliar no que fosse possível. Conversou longamente com a diretora e se dispôs a ajudar, sugerindo a criação de um grupo com os alunos para discutir, poesias, literatura e outras questões que a diretora considerasse relevante nos temas sociais. A diretora, Judith, gostou muito das ideias propostas e procurou organizar os alunos que ela já percebera carente de novas leituras diversas. A biblioteca da escola era muito carente de recursos para incorporar novos livros e incentivar a esse grupo no caminho do conhecimento.
João despia-se da idade, ignorava o tempo e se juntava aos adolescentes para discutir ou propor textos, poemas ou outras discussões sobre literatura. O que ele mais sabia fazer era liderar esses jovens inquietos, famintos de conhecimento e distante do mundo nesse pequeno vilarejo. Procurou fazê-los maravilhar-se com os livros, com os poemas, com a natureza que os cercava. Ele acreditava em uma educação libertaria, ainda que considerada uma utopia por muito professores e pensadores. Sabia que a educação convencional podava, muitas vezes, os alunos, com muitas regras. Ainda que consolidada, esse tipo de educação fazia os alunos perderem o interesse em determinados conteúdo ou temas.
Introduziu conhecimentos sobre versos, estrofes, estruturação dos poemas, tipos de poemas, tais como sonetos, prosas poéticas, indrisos, poetrix. Falou sobre a sextilha, estrofe mais famosa do cordel e deu exemplo de um cordel do Adriano Villa. Falou sobre a metrificação de um verso, ou seja, a contagem de sílabas poéticas. Ensinou como contar as sílabas poéticas! Deixou os participantes admirados! Também introduziu poemas de Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cora Coralina, Mario Quintana, Clarice Lispector, dentro tantos poetas brasileiros.
Assim João passava a vida entre a sua terra e seus alunos. Uma vida simples e cheia de ressignificação, sem ambições desmedidas e extremamente contemplativa. Assim, ele encontrou a paz que buscava, longe dos conflitos, das arrogâncias, dos desmedidos conflitos, das rivalidades desnecessárias. Aprendeu a lidar com a terra de maneira responsável e, concomitantemente, não se afastou das relações com os jovens, procurando introduzir ou aprimorar seus conhecimentos imberbes.
Desta forma, João encontrou-se, distantes daquela cidade que tanto o atormentava e o deprimia...