o amor nos livros do sebo
domingo pela manhã, ela percorre o mesmo caminho que faz todo fim de semana. acorda cedo, coloca seus tênis surrados, o moletom verde que tanto adora e sai caminhando pelo bairro. desce as escadas, ouvindo alguma música antiga nos fones de ouvido, enquanto faz um coque e sacode o vestido. sempre se surpreende em como, mesmo morando há tanto tempo no mesmo lugar, ainda acha algo novo e diferente e extasiante que a faz suspirar e pensar em como a vida pode ser boa, afinal. cumprimenta os idosos que se sentam no parque, brinca com o cachorro da vizinha da rua de baixo que saltita quando a vê. a feira está movimenta e aproveita para escolher algumas frutas e legumes, comprar um arranjo novo de flores e tomar um café perto do sebo, o seu destino final depois de uma boa caminhada. adora o cheiro de livros antigos, que guardam não apenas as histórias escritas por seus autores, mas também as vivências daqueles que manusearam suas páginas enquanto os possuíam. o proprietário já a conhece, sorrindo quando ela abre a porta. indica onde ela pode encontrar as últimas aquisições. ela vai andando com toda calma do mundo, passando as mãos pelos livros, querendo absorver um pouco da sua magia. na pilha dos recém chegados ela vai lendo os títulos, na esperança de que algum chame sua atenção. e um atrai o seu olhar. ela o pega e lê o seu título: sentimento do mundo, de carlos drummond de andrade. adora poesia, que é o combustível da alma. abre o livro para apreciar suas páginas, e eis que vê que há uma dedicatória em meio às páginas iniciais. ela lê, ávida para absorver as palavras, os sentimentos ali presentes. “querida c, feliz aniversário! pensei muito no que eu poderia te dar para tentar traduzir um pouco do que você é para mim. após pensar muito, optei por um livro. mas não poderia ser qualquer livro, devia ser um que te tocasse de alguma forma. escolhi o mestre drummond, que sempre sabe o que dizer. ele é o cara quando se trata de falar de sentimentos - muito melhor do que eu, diga-se de passagem. por isso, quis te dar de presente meu livro de cabeceira (que eu descobri por acaso, passando em frente ao sebo da rua de trás, que você insistia para eu ir lá) para você se sentir mais perto de mim. drummond me ensinou que o ódio é o melhor de mim, porque é ele que nos move e nos protege da apatia. bem, é uma boa visão. não posso discordar, pois detesto muita coisa e ignoro outras. mas se há algo que eu não consigo desviar meus pensamentos, é você. assim, acho que tão semelhante ao ódio é o amor, porque nos convoca a viver plena e intensamente, mesmo que a vida seja um pouco maçante, às vezes. tal qual o amor que sinto por você e que a gente ousa construir, em meio a tanta adversidade. amor é amor, sem mais. a gente tem mais coragem para enfrentar os desafios da vida quando nos sentimos seguros. e todo amor é seguro. se não, não o é. te entrego, com este livro, uma parte de mim porque me sinto segura com você. e espero que se sinta segura comigo. com amor, nina.” quando termina de ler, seu olhos estão marejados. que drummond a perdoasse, mas aquela dedicatória, que mais parecia uma carta de amor, era maior preciosidade daquele livro. diria até que a poesia ficaria um pouco desbotada em meio essa urgência em se dizer o que se sente ao seu objeto de amor. ficou impactada com aquelas palavras. ah, o amor tem esse poder, de dar esperança, agitação aqueles que o veem de perto, mesmo que seja nas páginas de um livro. porém, se dá conta de que se estava segurando aquele livro, algo havia acontecido para interromper aquela história de amor. ela se pergunta o que houve com todo esse amor que foi derramado nas páginas. onde estariam essas pessoas que tiveram a sorte de se encontrar e se apaixonaram. o que teria acontecido entre elas para que esse livro viesse parar no sebo da sua rua. ela não fazia ideia. não há qualquer pista naquele exemplar. se sente um pouco triste com essa interrupção de algo tão bonito. mas não há o que se fazer. para que se afligir. melhor é apreciar o que sentiu com aquela declaração. assim, seja lá o que houve entre essas desafortunadas amantes, o amor delas não se perdeu totalmente, pois reverberou em seu interior através das palavras. abraçou o livro, com a certeza que não poderia mais se separar dele. se encaminha até o caixa, paga e dispensa a embalagem. o atendente mal lhe diz tchau, pois ela já está absorta no livro, folheando as páginas e recolocando os fones de ouvindo, embalada por alguma cançao de amor. sai andando pelo caminho de volta, para casa, com o livro aberto, se deixando tocar pela poesia de drummond e do amor que ele desperta nos desavisados que o ousam ler. o dia parecia ainda mais amarelo lá fora.