As Carolinas
Era uma manhã nublada de terça-feira. Os carros e as plantas ainda estavam cobertos por um fino orvalho. As janelas embaçadas da vizinhança me faziam querer estar na cama. No caminho para o ponto de ônibus, só conseguia pensar em como desejava estar debaixo das cobertas, sem o som estridente do despertador anunciando minhas obrigações naquela manhã fria. Bem, o que me consolava era o fato de que às terças-feiras eu saía mais cedo do trabalho. Ufa!
Por algum motivo misterioso, o dono da padaria em que eu trabalhava liberava os funcionários uma hora mais cedo às terças-feiras, o que me mantinha otimista para começar a semana. Dada a situação na minha casa, não soava nada mal passar mais tempo na rua. A questão era que eu não queria passar minha vida sujo de farinha ou atrás de um balcão, embora ultimamente tivesse uma curiosa vontade de atender os clientes.
Tá, vamos lá. Não é tão curioso assim. O nome dela é Clarice. Ela geralmente vem à tarde, pede uma xícara de café com leite, mais leite do que café.
— Com bastante açúcar, de amarga já basta a vida.
Ela pega uma mesa com vista para a janela, come duas carolinas com cobertura de chocolate e lambe as pontas dos dedos. Me pergunto se esse é um sinal de que as carolinas estavam muito gostosas, ou se ela apenas não quer sujar as páginas dos diferentes livros que sempre carrega dentro de uma bolsa de tecido com bordados coloridos.
Outro dia, o cara que trabalha limpando e servindo mesas faltou devido a uma “virose”. Virose essa mais conhecida como porre. Ele tinha por volta de 45 anos, mas se comportava como um adolescente no ensino médio, amanhecendo em festas e bebendo até perder seus inúmeros empregos temporários.
Seu Dom, um senhor de mais de 60 anos, imigrante português de pele extremamente clara e avermelhada, sobrancelhas grossas e nariz visivelmente protuberante, pediu para que eu cobrisse o garçom. Consenti com a cabeça, tirei meu avental sujo de farinha e fiquei no salão limpando e tirando os pedidos das mesas. Foi a primeira vez que vi Clarice.
As unhas sempre pintadas de diferentes cores, a bolsa de tecido com bordados, os chaveiros que faziam barulho, os livros, o cabelo preso em um coque no topo da cabeça, os óculos escuros que eram guardados e davam lugar aos óculos de grau para a leitura, a maneira como ela apertava os olhos para ver enquanto limpava as lentes, a forma como ria sozinha e degustava as carolinas. Havia algo magnético nela. Algo que prendia minha atenção.
Comecei a trabalhar de fato no salão, pois a equipe estava desfalcada. De início, fiquei chateado porque, além de ter que falar com as pessoas, o trabalho era mais cansativo e eu não poderia ficar em silêncio como na cozinha, onde o padeiro era um homem de poucas palavras. Tudo mudou quando percebi que Clarice frequentava a padaria às terças e quintas à tarde.
_ Você é novo aqui? Qual seu nome?"
Senti um ar quente por detrás do meu pescoço que logo invadiu meu rosto e respondi:
— Me chamo Theo,falei com a voz meio trêmula e baixa.
Ela sorriu e disse:
_ Theo de quê?
Ainda olhando para baixo, respondi:
_ Apenas Theo.
Ela, ainda sorrindo, disse:
_ Que legal, um nome sem apelido. Gostei. Theo, vou querer um café com leite, mais leite do que café. Mas por favor, gosto de leite com espuminha; o antigo cara não trazia com espuminha. E 2 carolinas cobertas de chocolate."
Anotei o pedido e, ainda com o coração batendo na minha garganta, me retirei.
No caminho para a cozinha, para pegar as carolinas mais frescas, repassei o diálogo um bilhão de vezes, me sentindo um completo idiota. Pensando em como ela havia sido gentil e espirituosa e eu um completo bocó. A verdade é que não sou muito bom com pessoas, principalmente com meninas. E ela meio que me deixava hipnotizado, não conseguia agir de forma natural na presença dela. Eu de fato a achava diferente, elétrica, vibrante, mas não sabia nada a seu respeito, a não ser que gostava de espuminha de leite no seu café.
Para ser sincero, sou do tipo que não sabe muito sobre muita coisa, mas por me faltarem palavras, me sobra atenção. Por vezes me pego estático, quase que boquiaberto, assistindo às pessoas, à vida. Posso não me lembrar do nome, mas me lembro dos brincos, gravatas, relógios... Acho que é o que acontece com quem cresce em uma casa barulhenta e emocionalmente silenciosa. Você aprende a observar!
Minha mãe, coitada, sempre exausta. Nunca vi aquela mulher faltar um dia ao trabalho, reclamar do trânsito ou murmurar por coisa alguma. Porém, dona Clau (apelido carinhoso de Cláudia) tinha um dos olhares mais pesados e vazios que já vi em olhos humanos. Compreensível, uma vez que vivia mais na casa dos patrões do que na própria casa, criou filhos que não eram dela e atravessava a cidade para limpar banheiros e organizar closets maiores que sua sala de estar, por míseros trocados que mal a possibilitavam cuidar de suas dores nas costas.
Enquanto seu Walmir, o homem mais durão que já conheci, com grandes mãos calejadas, vincos ao redor dos olhos, cabelos e barbas grisalhas, tom de voz áspero, sarcasmo, revolta política e um tanque de álcool, trabalhava consertando carros em uma oficina na garagem dos fundos de casa. Era de onde vinha a maior parte do sustento da família. Reclamava de absolutamente tudo com rispidez e, por vezes, hostilidade.
Havia uma única coisa que brilhava os olhos do meu pai. Era quando meu irmão mais velho ligava dizendo que viria para casa assistir ao time deles na TV. Era algo que eles tinham desde que me conheço por gente. Os dois tinham a incrível habilidade de coexistirem sem desconforto. Afinal, eles gritavam meia dúzia dos palavrões mais sujos, criticavam o time, palpitavam sobre o desempenho do técnico e concordavam sobre isso como donos de verdades absolutas. Fato que os aproximava.
Afinal, meu irmão já não morava mais em casa há uns 8 anos. Porém, mantinham a tradição. Kevin, meu irmão, era o menino de ouro, trabalhava desde os 15, sempre muito responsável e durão como meu pai. Sabia desde mecânica, hidráulica até bons vinhos. Meus pais sempre diziam satisfeitos o quanto mal sabiam da vida dele, pois ele era precocemente independente e nunca foi de dar “dor de cabeça”.
Todas as vezes que os ouvia dizendo isso, me levava a pensar que ninguém se conhecia de fato naquela família. Eles não conheciam o Kevin, eu não os conhecia, e nenhum deles tinha a menor ideia de quem eu era.
Enfim, a padaria acabou sendo meu segundo lugar favorito, porque o primeiro era uma livraria a dois quarteirões dali. Frequentava-a algumas vezes durante a semana no horário do meu almoço, ou aos sábados pós-expediente. Lá, tudo era tão silencioso, porém de um jeito bom. Tudo limpo, organizado e com um mundo de opções. Comecei pelos livros do Stephen King, porque vi um cara lendo no trem e achei a capa maneira. Mas depois li Marx, poesia, casos criminais e alguns que estavam na promoção em uma das bancas que ficavam na entrada da livraria. A coisa é que aquele lugar se tornou minha “batcaverna”; lá, eu não precisava falar e poderia passar horas observando os diferentes leitores, suas escolhas inusitadas, seus óculos de armações diversas, o tom da voz mudando quando falavam com um atendente à procura de ajuda para achar algum livro, ou quando eram atravessados pelo som do celular tocando demasiadamente alto em local de leitura, fato esse que me causava vontade de rir. Ou até mesmo seus olhos vidrados em uma leitura cativante.
Eu poderia passar horas naquele lugar!
No fundo da livraria havia um café, charmoso e com pessoas aparentemente ocupadas, com seus notebooks, fones e celulares de última geração, teclando freneticamente como quem escreve algo de suma importância e urgência.
Às vezes me perguntava por que Clarice não frequentava aquele lugar visivelmente mais elegante. Me vinha a imagem dela, tão vibrante e cheia de cor. E logo aquele café parecia pequeno e blasé demais para ela. Clarice era BRIO.
Nas semanas que se seguiram, Clarice não apareceu na padaria. Despretensiosamente, seu Dom comentou com o padeiro que estranhou sua ausência; ele a chamava de "menina das Carolinas".
— A menina das Carolinas não deu mais as caras por aqui. Aquela dos livros que fica horas naquela mesa perto da janela. A que só come carolinas... — disse seu Dom, balançando a cabeça.
Seu Dom e o padeiro costumavam ter breves diálogos a respeito dos pedidos, do salão, do movimento e, esporadicamente, dos clientes que frequentavam rotineiramente a padaria.
— O senhor sabe se está tudo bem com a moça das carolinas? Ela nunca mais apareceu — perguntei, acidentalmente em voz alta.
Ele olhou surpreso pela minha interação espontânea, levantando uma das sobrancelhas, e disse:
— Acho que foi a mãe outra vez. Pobre moça!
E, em um gesto de negação, saiu balançando a cabeça.
Aquilo reverberou dentro de mim. "Pobre moça!" Como assim?
Jamais tive a visão de uma moça com problemas em casa. Que tipo de coisa ela estava resolvendo ou lidando que a impossibilitava de fazer o que gosta? Algo tão simples e que ela fazia religiosamente.
Passaram-se mais duas semanas e lá estava ela. Estava de costas quando chegou e se sentou na mesa próxima à janela. Não a vi entrar, mas sua voz doce e um pouco estridente penetrou os meus ouvidos, esquentando minha nuca e bagunçando algo dentro da minha barriga, enquanto meus batimentos disparavam como quem anda de montanha-russa.
Ainda com uma bandeja na mão da mesa ao lado, me virei e fui em sua direção, avisando que já a atenderia. Ela sorriu de canto de boca, como quem involuntariamente esconde os dentes. Acenou com a cabeça, concordando em esperar minha volta para atendê-la.
No caminho para a cozinha, pensei em tantas coisas... na mãe, no sumiço e no meio sorriso. Curiosamente, queria escutá-la, queria conhecê-la, queria beber de suas palavras e, sobretudo, acolhê-la.
Que loucura! Logo retomei a consciência de que não a conheço. Por que ela me fascina? Por que me preocupo com ela? Por que senti falta dela, se nem ao menos conversamos?
Enfim, cheguei novamente em frente à mesa, onde ela lindamente lia um livro que já estava pela metade. Pedi licença com a voz descontroladamente baixa. Ela olhou em direção ao meu rosto, o que me deixou estranhamente exposto, e fez o pedido de sempre. Dessa vez, não exigiu a “espuminha de leite”. Anotei e fui preparar o café, tendo em mente que, na esperança mínima de agrada-la, que colocaria a espuma da qual não me esqueço que ela gosta.
Ao voltar com seu pedido, ela o recebeu e, quando viu a grande quantidade de espuma, sorriu com os olhos se fechando, como uma criança que ganha o presente esperado no Natal. Aquilo me aqueceu, foi como uma corrente elétrica passando por cada milímetro do meu corpo. Com um enorme e brilhante sorriso, ela me agradeceu.
Hoje, Clarice ficou até mais tarde. Já era hora de fechar a padaria e ela ainda estava sentada. Quando me aproximei para avisá-la de que estávamos fechando, percebi que ela cochilou em cima de seu livro. Cuidadosamente, a acordei. Ela, ainda assustada, sem saber muito bem onde estava, sem graça, pediu desculpa e, mais do que depressa, começou a guardar suas coisas na bolsa. Ainda desconcertada, se desculpou mais uma vez.
— Meu Deus, onde estou com a minha cabeça? Não sei o que me deu. Que horas são? Desculpe mesmo, eu caí no sono e nem percebi. Caramba! Dormir na padaria. Essa é nova, Clarice!
Enquanto ela se preparava para sair, me peguei pensando em como gostaria de saber mais sobre ela, dizer que está tudo bem cochilar ali, falar sobre o que possivelmente a assombrava e tudo o que a fazia parte dela . E, quem sabe, em um rompante de coragem convida-la para um café fora dali.
Clarice foi em direção à porta, se despediu rapidamente com um:
— Até mais!
Poucos minutos depois, também deixei a padaria.
— Até amanhã, sou o Dom!
— Bom descanso, rapaz!
Ao cruzar a esquina, lá estava ela, procurando angustiada algo dentro da bolsa. Sentou-se no banco do ponto de ônibus e, aflita, revistou a bolsa com afinco. Corajosamente, intervi, dizendo:
— Está tudo bem? Você precisa de ajuda?
Ela levantou a cabeça depressa e, com um olhar surpreso, disse:
— Ah, é você! Que susto! Não encontro minhas chaves. Você, por acaso, não viu nenhuma chave perdida na padaria?
Se alguém tivesse achado uma chave, teria colocado na caixinha de achados e perdidos dos clientes, que raramente voltavam para buscar seus pertences, exceto carteiras e celulares, que eram reclamados de imediato.
— Não achamos nenhuma chave hoje.
Prontamente, sugeri refazermos o caminho na esperança de encontrá-las. Ela rapidamente aceitou, e começamos a caminhar. Via nossos pés perfeitamente coreografados em passos sincronizados, eu de botas e ela de All Star vermelho. Seu cabelo cobria o rosto enquanto olhava fixamente para baixo, examinando concentrada cada centímetro do chão.
Dito e feito! A alguns metros dali, encontramos as chaves com chaveiros infantis que faziam barulho.
— Acheeeei! — ela gritou, entusiasmada. — Graças a Deus!
— Aí estão vocês, danadinhas!
— Que maravilha. Hoje você não dorme fora de casa — as palavras saltaram da minha boca.
— Que sorte a minha! — disse, empolgada, levantando as mãos para o alto.
No caminho de volta ao ponto, vimos o ônibus dobrar a esquina.
— Putz! Aquele era meu ônibus...
Levando a mão à testa, ela viu o ônibus desaparecer na rua.
Já anoitecia. As luzes amarelas dos prédios brilhavam nas janelas, o som dos jornais nos comércios ecoava e os faróis dos carros já cegavam.
— Você mora longe daqui? — perguntei.
— Moro do outro lado da cidade. E o próximo ônibus é daqui a 1 hora. Mas tudo bem. Obrigada por me ajudar. Não quero atrapalhar sua noite. Você salvou minha vida hoje!
Mal sabia Clarice que ela, sim, salvou minha noite. Mal podia acreditar que estava em sua companhia; que nem que quisesse me atrapalharia.
Ainda com a voz baixa, assegurei que ela não estava me atrapalhando. Ela então me perguntou para que direção eu estava indo. Falei que seguiria alguns quarteirões na direção norte, e ela me disse que havia outro ponto de ônibus nessa mesma rota. E, novamente, caminhamos juntos.
Sabe quando você tem um sonho tão vívido durante a noite que, ao acordar, a realidade e sonho se confundem? Era exatamente assim que eu me sentia naquele momento. Seus cabelos dançavam ao vento frio, seu perfume levemente doce se espalhava, e eu só desejava que aquele caminho se prolongasse.
_ Trrrim-trrrim…
Clarice atendeu o celular.
_ Sim, sou eu...
_ Onde ela está?
_ Está tudo bem?
Seu semblante já não era mais o mesmo. Agora, os olhos outrora brilhantes e vívidos pesavam toneladas. Vi uma lágrima densa percorrer seu rosto.
Clarice parou abruptamente, algumas pessoas que passavam retrucaram algumas palavras rudes. Ela então me disse, com a voz embargada:
_ E agora?
Meus olhos encontraram os dela, que desabaram imediatamente. Clarice me disse:
_ Estou só... agora é de vez!
_ Ligaram do hospital, minha mãe não resistiu...
Suas palavras dilaceraram cada parte de mim. Quando me dei conta, Clarice estava envolta em meus braços, minha camiseta encharcada pelas lágrimas dela. Seus soluços faziam com que eu a apertasse contra o peito na tentativa mais tola de protegê-la do mundo e da dor.
Acenei para um táxi que passava pela rua. Entramos no carro e seguimos para o hospital. Lá, os médicos nos informaram que foi uma parada cardíaca, causada pela mistura de remédios com bebida.
As palavras ditas na padaria ecoaram na minha mente: "Foi a mãe outra vez."
Clarice frequentava vários lugares durante a semana; o nosso era nas tardes de terça e quinta. Ela precisava daquele tempo fora do caos. Afinal, estudava de manhã e trabalhava três noites por semana em uma pizzaria. Sua mãe, Mariza, tinha apenas 36 anos, mas a vida não tinha sido gentil com ela, e como retribuir com gentileza?
Clarice cresceu mudando de casa em casa, vendo a mãe afundar em dívidas, relacionamentos conturbados e bebida.
Naquela cadeira de plástico azul e fria, eu vi as entranhas de Clarice. Ela já não era mais a moça das carolinas. Recostada sobre meu ombro, estava a dona do meu coração. Segurei suas mãos e disse:
_ Estarei com você, Clarice.
E assim, conheci a dor. Sobretudo o amor.