Para você sob a montanha

O sol brilhava forte sobre a copa das árvores quando Ivan amarrou o último coelho à corda gasta, jogando-o para trás das costas junto à aljava vazia.

O inverno dificultava sua movimentação, tornando a caça quase impossível. As pegadas eram rapidamente cobertas, o solo macio intrincava o homem com baixa audição de ouvir qualquer movimentação por entre as árvores.

Limpando a faca no tecido sob seus pulsos, ele rumou para junto ao cervo. Os olhos do animal mantinham-se entreabertos, sem brilho. O homem passou suas mãos por sua pelagem caramelo, num pedido de perdão silencioso. Seus dedos envolveram o cifre da criatura, enrolando uma pequena tira de couro em seu entorno, segurando firmemente a outra ponta, para aumentar o atrito.

Seus olhos escuros percorreram os arredores.

— Tá na hora de voltar, Parceiro! - Gritou entre um assovio e outro.

Não demorou muito para o focinho de um lobo cinzento aparecer por entre a neve, seus olhos inteligentes contrastando com as manchas carmesim em sua pelagem densa, graças à caça bem sucedida.

— Vamos?

O lobo uivou em resposta, guiando o homem que começava a descer a montanha.

O animal vagava curiosamente à sua frente, guiando seus passos pesados; mas nunca se afastava demais, sempre alerta a qualquer aproximação repentina. Parceiro, como fora apelidado, era a companhia ideal para um caçador de meia idade com a audição pela metade.

Ivan olhou para trás, para as figuras disformes riscadas no chão, suas pegadas misturadas ao sangue contavam uma história sussurrada no vento. Uma história antiga, que ele não gostaria de ouvir. Ele apertou seus olhos, voltando a andar, Parceiro o encarava curioso de cima de uma pedra logo à frente.

O lobo se juntou ao homem, uivando enquanto encarava às árvores que começavam a deixá-los para trás, chamando o último membro de sua matilha, alguém que já não estava mais lá.

O homem encarou seu companheiro, fazendo um carinho solidário sobre sua cabeça.

Era estranho para ele também, andar por entre aquela montanha sem sua presença, como se uma parte dele tivesse sido deixada para trás. Era por isso que odiava aquele silêncio que rasgava sua pele e levava sua mente para longe; ele perdia o controle.

Ivan passou a mão por seu pescoço, enrolando a corrente entre seus dedos, o metal gélido arrepiando a espinha. Aquele anel não fora uma escolha sua, Ivan não gostava de trivialidades, não via sentido naquele símbolo, mas nunca deixou de usá-lo e nunca se arrependera. Aquela estilha de metal acobreado era uma lembrança, ele nunca se desfaria dela.

Aquela montanha pertencia a eles, cada árvore, cada pedra, tudo talhava em sua mente que algo estava faltando. Ivan acreditara que, com o tempo, as memórias não lhe rasgariam mais o peito, mas o vazio permaneceu.

Ele suspirou e apertou o passo, seus olhos percorrendo o horizonte, focando o filete de fumaça que infiltrava-se por entre as nuvens. Por entre as árvores, surgia uma pequena cabana, feita em pedra e tronco. Aquele era seu lar. O lar deles.

Não demorou muito para seus pés alcançarem a casa, com Parceiro em seu encalço. As paredes da pequena cabana se erguiam persistentes por entre a neve, sem nenhuma janela, o casebre se posicionava no centro de um jardim vazio.

Algumas poucas árvores cercavam aquele terreno, abrindo espaço para o penhasco logo à frente. Aquela era a melhor vista daquele lugar, “o melhor lugar para se ter uma casa”, ou foi isso que lhe dissera.

Ivan balançou a cabeça para expulsar seus pensamentos, havia muito a ser feito. O homem arrastou o cervo em encontro a árvore mais próxima, amarrando suas patas traseiras à uma corda; jogando-a para cima de um galho espesso, ele suspendeu-o no ar.

Puxando sua faca, talhou no pescoço do animal uma abertura, deixando o sangue escorrer por sua pelagem, colorindo seus cornos, até irem de encontro ao chão, tingindo a neve em um vermelho brilhante, fazendo o mesmo com o casal de coelhos que caçara.

Ele acariciou a pelagem do cervo mais uma vez e rumou para a cabana. Parceiro esperava pacientemente à porta, ao empurrá-la, seus olhos vasculharam o ambiente. Aquele era o pior lugar, seu cheiro ainda estava lá. Podia senti-lo presente em cada pedacinho daquela casa.

Não havia muito nela, uma cama coberta por uma espessa manta de pelos, com um pequeno baú a seus pés. Do lado oposto, junto à mesa e um par de cadeiras, a lareira impedia o frio de gelar seus ossos – foi à sua frente que Parceiro se aninhou, deitando confortavelmente sobre o chão.

A cabana não possuía janelas, era pequena e sem muita mobília, mas era o necessário para duas pessoas viverem sobre aquelas montanhas. Ivan desprendeu a aljava de sua cintura, pendurando-a juntamente a seu arco.

Puxando um pequeno caldeirão de ferro, Ivan adicionou mais madeira ao fogo, colocando o objeto sobre a chama, começando a preparar uma receita da qual não lembrava os ingredientes, mas vira ser feito mais vezes do que pudesse contar em seus dedos.

O lobo observava curiosamente os movimentos de seu companheiro, pendendo a cabeça para o lado à cada novo condimento posto ao fogo, uivando intrigado. Sua pelagem mesclada entre cinza e pardo emolduravam densos olhos áureos. Era uma criatura inteligente; imponente.

O céu tingia-se em laranja quando Ivan serviu a primeira tigela de ensopado, largando-a a frente do lobo.

- Sua porção, Parceiro. - disse, pegando mais duas tigelas.

Ivan dirigiu-se para fora da cabana, com as duas tigelas em mãos. Sentando-se à borda do penhasco, onde um arco emoldurava o sol poente. O arco, estava cravado ao chão; em sua empunhadura jazia uma corrente, carregando um anel, gêmeo ao seu.

Ivan encarou o horizonte, o lobo deitando-se ao seu lado. Seus olhos se fecharam, apreciando os últimos raios de luz.

Ivan largou sobre o chão uma de suas tigelas, ao lado do pequeno memorial; uma oferenda. Seus dedos envolveram o anel envolto ao arco, apertando-o suavemente.

- Seu favorito, querido.