UM SONHO JUVENIL

De pé do outro lado da rua, com os olhos cravados na janela do Alberto’s Gary era “apenas” coração. Dos pés à cabeça, pulsando esperançoso. A figura escondida atrás do letreiro de neon do bar, entretinha-se com as contas. O estabelecimento já fechara e todos os funcionários tinham saído. Ignorava o par de olhos do outro lado da janela e da rua, cheios de desejo, tentando decifrar seus movimentos. Sentia-se perturbada, mas por outra coisa naquele momento. Seu olhar repassava a mesma soma pela quarta vez. O cérebro gritava desesperado, desejoso em acionar uma marcha qualquer e seguir em frente. Fazê-la esquecer uma lembrança da noite anterior.

O jukebox estava desligado e uma voz monocórdica em um rádio comentava as notícias do dia. O marido de Christie, George, sentara duas mesas além de costas para ela, fumando e bebericando seu whisky, apesar dos problemas de saúde. Alheio ao “barulho” intenso dos cérebros da esposa e do jovem do outro lado da rua, não imaginaria nem mesmo em sonhos a relação que os unia.

Era um potencial culpado. Oferecera a vaga ao filho do vizinho. Além disso, vinha constantemente falhando na cumplicidade, no companheirismo, no amor para com ela. O rapaz aceitou a vaga temporária, incentivado pelos pais:

— Vai passar um mês sem fazer nada? Há boas gorjetas por lá.

Um ano de academia militar tinha lhe rendido muito mais do que conhecimento, disciplina e músculos. Transformara-se em um homem e identificara seus objetivos na vida. Adequou os sonhos adolescentes. Separou-os em possíveis e improváveis. Christie era uma lembrança deliciosa da juventude.

Na festa de aniversário de sua mãe, quando tinha doze anos. Gary observava os casais girando ao som de canções românticas, e Christie lhe atraiu a atenção. O modo como se enroscava nos braços do marido, as dobras e desenhos do vestido comportado, a exuberância de suas curvas. “A noite vai se acabar e os dois estarão a sós e nus sobre uma cama, se amando” — pensava influenciado pelas fotografias em revistas proibidas guardadas em seu quarto.

O inusitado aconteceu. Christie foi deixada a sós. George foi ao banheiro. Ela avançou em sua direção e o arrastou para o salão, quando Billie Holiday começava a cantar You go to my Head. Nada mais apropriado para encher de caraminholas a mente de um garoto.

Não intuiu o embaraço que causava ao adolescente. Billie Holiday descrevia o desejo como bolhas em champagne e um sol de mil verões. Gary concentrava-se em não dar bandeira, sentindo-se hipnotizado pelo decote dela. Esforçava-se para não pressionar demais as mãos na cintura torneada. Tentava não se enfeitiçar pelo perfume emanado da alegria de Christie.

O marido reapareceu e o tirou do mundo dos sonhos. Escapuliu para seu quarto o mais depressa que pode. Ficou observando-a rodopiar de longe pela janela. Desde então, vê-la era uma tortura e um prazer. Escondia-se para isso.

Entendeu com o passar do tempo, que se tratava de um sonho improvável. Não poderia tomá-la à força. Era vinte anos mais moço. Não levava em consideração a possibilidade de surgir uma paixão entre eles. George e Christie não escondiam de ninguém o quanto estavam apaixonados naquela época.

Gary então passou a imaginá-la na pele de outras garotas. Preferia as semelhanças: cabelos negros, pele dourada. Esses namoros foram diminuindo sua fixação. Mas era inegável que os encontros fortuitos o balançavam e a imagem e as sensações daquela dança retornavam em momentos solitários.

A academia, de certa forma, cuidou de corrigir certos comportamentos. Era um homem agora e um soldado. Primeiro, o dever. Por nenhum segundo pensou sucumbir no desejo adolescente ao apresentar-se como candidato à vaga de garçom e ser prontamente aceito.

— Nossa, Gary! Você era um pirralho e agora está desse jeito. Um “homão”.

A admiração dos olhos dela percorrendo seus músculos o acertou em cheio. Esforçou-se para manter-se cordial e refutar os elogios, pois Christie estava de braços dados com George. A superioridade física sobre o marido dela avivou ainda mais as brasas daquele antigo desejo.

A atenção dispensada a ele na primeira semana, ao ensinar as tarefas com olhares e sorrisos, o embarcou em um desvario de ansiedade. Na segunda semana, George o chamou para uma conversa e recomendou prudência. Tinha notado o aumento na frequência feminina no bar por conta de sua presença.

— É inevitável, garoto. Quando uma mulher quer, é difícil dizer não. Você chama a atenção delas. Só não use os fundos do meu bar para seus encontros, ok?

A única mulher que interessava a Gary, no entanto, era inalcançável. Christie reinava soberana em sua mente. O aumento ligeiro no movimento causou uma mudança no comportamento dela também. Passou a se produzir um pouco mais se fazendo mais presente entre as mesas. Isso a trazia mais para perto dele, mais ao alcance de um toque.

Certa noite George deixou o posto muito mais cedo. Estava com uma indisposição estomacal. Medicou-se e deixou Christie sozinha à frente da equipe. Pediu a Gary que ficasse com ela até o final para ajudá-la a fechar o Alberto’s.

Christie guardou a féria no cofre e entregou um envelope com as gorjetas ao rapaz. Ele agradeceu e por um momento, suas mãos se tocaram. Um suspiro tomou-lhe a respiração e olhando-a com um sorriso leve, disse:

— Posso pedir-lhe uma coisa?

Christie ficou surpresa por um instante e moveu a cabeça de leve, assertivamente. O rapaz foi até o jukebox, digitou o número de uma canção e Billie Holiday soltou a voz: You go to my head, and you linger like a hauting refrain, and I find you spinning round in my brain...

— Você dança essa comigo?

Aquilo a desconcertou. Não tinha a menor ideia de como evitar. De repente, um leque de pensamentos desconjuntados se abriu na mente dela. O mais fraco deles dizia que aquilo não estava direito. Gary avançou e puxou-a pela mão para o corredor entre as mesas onde havia mais espaço. Correu a mão na cintura de Christie e um “quase” arrepio subiu até o rosto da mulher, arrancando um sorriso mais aberto e acanhado. Os olhos tornaram-se ligeiramente assustados com a situação.

A sós, protegidos pela penumbra do luminoso, rodopiaram devagar, acompanhando o sopro dos metais. Gary pressionava suas costas e a cada instante os corpos estavam mais próximos. Os olhares se cruzaram e, contrariando a intenção, Christie desviou o rosto rapidamente. O beijo anunciado continuaria fazendo parte do seu sonho juvenil. Separaram-se e ele foi-se embora, pensando em possibilidades.

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 01/11/2024
Código do texto: T8186956
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