Um conto de Vento no litoral
De tempos em tempos, a cena volta à minha mente. Estou numa cama de hotel, deitado de lado, imerso em pensamentos confusos — pensamentos de garoto. A cena se desenrola naquele tempo, nos dias de garoto. Mais cedo, naquela noite, ao redor de uma fogueira, alguém havia me dito que eu pensava demais. Pois ainda penso, já que estou aqui outra vez, preso a essa imagem.
A cena continua, indo e vindo, como um vídeo acelerado em que os detalhes se esvaem. Ali, deitado, sinto um misto de medo e incerteza. Devo correr até ela e confessar? Dizer que estou apaixonado? Que não consigo tirá-la da cabeça? Que só quero ficar com ela até o fim da viagem? A imagem congela, um riso cresce dentro de mim. Olha só até onde o olhar de um garoto vai: ficar com ela até o fim da viagem. Patético.
A cena avança, e o pensamento antigo retorna para me assombrar: logo o tempo vai passar, e vou perder a chance de estar com ela. Já tínhamos nos beijado antes da viagem, mas fui um covarde. Não a assumi, não a acompanhei. Escolhi “curtir” a viagem, feito um tolo.
Estou triste ali na cama, como sempre estive. Pausa na cena. Por que sempre fui assim? Sem autoestima, sem amor-próprio? Olho para mim agora e vejo o garoto ainda vivo aqui dentro, onde a tristeza é forte, viciante, uma constante. A cena prossegue, com movimentos pelo quarto — um espaço bagunçado, com mochilas abertas, roupas espalhadas e colegas se arrumando para uma festa mais tarde. O cheiro da adolescência carrega consigo uma dose de desleixo e despreocupação. No toca-CD, o disco Mais do Mesmo, da Legião Urbana, toca, e, de repente, começa Vento no Litoral.
“... De tarde eu quero descansar, Chegar até a praia e ver...”
É como um chamado. Como se um portal de ficção científica se abrisse, ativado por algum dispositivo invisível. A porta se abre, e ela entra, animada para a festa de logo mais. Alguém a interpela, e ela para e conversa com outro colega. Seus olhos castanho-escuros flutuam entre a conversa fingida, frívola, e depois pousam em mim. Eu a observo como se fosse a primeira vez: cabelo liso e bem cortado, brincos grandes de argola, uma blusinha rosa de manga comprida, calça preta que lhe sobra no corpo magro, sempre magro, e tênis branco. A conversa dela se encaminha para o fim, e uma dúvida acende minha mente cheia de incertezas: o que eu faço?
“...Agora está tão longe, vê A linha do horizonte me distrai Dos nossos planos é que tenho mais saudade...”
Sempre achei que, nesse momento, um feixe de luz iluminaria minha cabeça, ou uma voz diria: Vai lá, fala com ela, aproveita antes que seja tarde. Mas nada. A mente confusa de um garoto sem experiência foi mais forte. Ela se aproxima o suficiente para que mais detalhes inundem minha memória hoje tardia. Ela cheira a banho recém-tomado, um perfume levemente doce, um frescor que destoava do quarto de garotos adolescentes. Começa a conversar comigo, como sempre fazíamos, porque éramos amigos antes do beijo. Éramos. Ela chega mais perto, posso sentir a respiração dela, o cheiro do gloss.
“...Quando olhávamos juntos na mesma direção Aonde está você agora Além de aqui dentro de mim?...”
Por mais que eu me esforce, não consigo me lembrar da conversa. Só lembro de olhar para sua boca, de sentir seu perfume. Nesse instante, Renato canta em seu tom grave, e as palavras tentam me trazer à razão, quase como uma profecia:
“Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou. Vai ser difícil eu sem você…”
A voz que eu tanto esperava estava ali, mas eu não percebi. Tenho vontade de gritar para aquele garoto: Idiota, levante-se! Leve-a para a sacada, beije-a outra vez, diga que ela é sua!
A cena desvanece antes do fim, como um elástico que me puxa de volta à realidade, pois viro o rosto para não ver. Na memória, acelero a cena onde sem motivo aparente a destrato com algumas palavras e viro as costas. Que idiota.
Anos se passaram, e eu não sei onde ela está. Hoje, não é um CD que toca; é um vídeo no YouTube. Alguém colocou um pôr do sol no fundo, e Renato volta para me lembrar:
“Sei que faço isso pra esquecer, eu deixo a onda me acertar, e o vento vai levando tudo embora…”
Essa é minha maldição: uma lembrança eterna, que o vento, teimosamente, se recusa a levar embora.