8016-O SONHO DE UM PIANISTA - Conto por Silvia Araújo Motta/BH/MG/Brasil
8016-O SONHO DE UM PIANISTA
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Conto por Silvia Araújo Motta/BH/MG/Brasil
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Desde a adolescência, Ademar comprovou que o {Tempo é o senhor da Razão}e mais tarde, aprendeu a origem desse ensinamento, em latim: {Tempus dominus rationis est.}. Filho de pais pianistas, em casa, sempre ouvia sua mãe dizer:
-Com paciência e perseverança, tudo se alcança: {Labor improbus omnia
vincit}.
O Sr. Agnaldo sorria e lhe dizia:
-Agnes, você tem razão, além do talento, tocar piano exige perseverança, boa vontade, inteligência, determinação de limites, humildade, boa visão, concentração, atenção, disciplina e muita paciência! Tenho de estabelecer a opção à prioridade musical a alguns convites sociais que recebo.
Aos 14 anos, o jovem Ademar escolheu seu presente de aniversário:
-Quero um piano!
-Nada disso, respondeu-lhe o pai. Você está na idade de estudar e ajudar sua mãe. Daqui a pouco, vai ter de arranjar o primeiro emprego!
Desencantado pela resposta imediata do pai, o jovem chegou à janela, sentindo a frustração marcada pelo egoísmo paterno, que pouco lhe emprestava o piano idolatrado, com todas as recomendações possíveis, quanto à higiene das mãos. Perto daquele piano não podia dar um espirro, alimentar e muito menos colocar copos e pratos sobre ele. O cuidado era tão grande que ele se sentia preso às exageradas normas para a utilização do seu passatempo favorito! Não havia poeira, nem sujeira naquele instrumento. Com as teclas, o cuidado era maior, estava sempre coberto com um suporte de veludo vermelho
e franjas douradas; marcando a lembrança de Dr. Klauss, seu avô.
De repente, Ademar ouviu uma voz doce que lhe falou baixinho aos ouvidos:
-Filho, venha ao meu quarto! Vagarosamente, ele acompanhou D. Agnes e viu quando ela abriu um cofre secreto, dizendo:
-Tenho dinheiro suficiente para comprar seu belíssimo instrumento musical. Há muitos anos, venho aguardando o momento certo de lhe oferecer esta poupança, que faço desde seu nascimento!
Ao amanhecer, os raios de sol vieram aquecer ainda mais a personalidade artística de Ademar e aguçar seu talento manifestado desde a infância. Bons tempos, em que sua mãe lhe dava as primeiras lições de música. Além do infinito, observou que as nuvens brancas da paz passavam para levar as tristezas do mundo humano. Diante do espelho do quarto podia ver maior brilho em seu olhar. Ademar aprontou-se feliz, recebeu a bênção dos pais e saía para a Escola que ficava próxima de sua casa, quando atendeu o chamado de D. Agnes que lhe disse:
-Ademar, hoje preciso encontrar você à porta da Escola. Teremos novidades após suas aulas! Vamos à cidade, na Loja dos Pianistas!
Com lucidez materna e liberdade criativa, D. Agnes convenceu seu marido, de que nada lhe custaria doar aquela economia, para realizar o sonho do filho.
-Não contem, comigo, o pai pensou alto! Não terei tempo de dar lições diárias para Ademar! Estou com muitas apresentações marcadas e tenho minhas composições para terminar!
-Não se preocupe! Cuidarei, desse grande incentivo ao nosso filho!
O sonho e a fantasia misturaram-se através do jogo familiar, nas vibrações maternas positivas e na reação paterna, sem flores, da primavera que só apresentou os ramos secos metafóricos, sem o apoio perfumado e harmonioso!
Passaram-se os anos e Ademar mostrava-se cada vez mais talentoso, com ajuda dos pianistas e professores de música, amigos de sua família. Logo, entrou para o Conservatório e a cada dia, desenvolvia seu talento e crescia o interesse pelo estudo da música. Professores e familiares puderam prever o futuro brilhante com chave de ouro, daquele gênio que cedo começou a fazer suas próprias composições. Os contratos foram aparecendo! Ademar chegou a ter um empresário para controlar tantas apresentações, em outros locais.
Ganhou uma Bolsa de Estudos, entrou para a Universidade e pode defender a Tese de Doutorado, para o título de Philosophy Doctor (Ph.D.) em Musicologia.
Viajou para fazer muitas apresentações fora do país. Sua presença em festas e em Grandes Teatros sempre foi muito aplaudida pelos convidados e assistentes.
O pai, cada vez mais enciumado pelo sucesso do filho, não lhe enxergava marcas talentosas:
-Agora, basta! A apresentação anual de aniversário do Teatro Municipal sempre fui eu, o responsável pela abertura! Desta vez, não fui convidado para tocar! É inconcebível tal decepção! Não irei assistir a apresentação do pianista principal!
Ao ouvir tamanha lástima, o filho pianista, aproximou-se do pai e tento explicar-lhe sua alegria:
-Pai, recebi a indicação do Diretor Cultural do Teatro! Meu empresário, minha mãe e eu estamos muito felizes. Será uma honra participar de um evento tão importante em nossa cidade. Prometo que não irei decepcioná-lo!
Agindo pelo impulso do ciúme, o Sr. Agnaldo foi ao piano de Ademar e rasgou
a partitura que estava à espera das mãos do grande artista reconhecido, por tantas pessoas!
Logo que Ademar viu sua partitura rasgada, diante de tanta maldade ficou com as mãos trêmulas e foi falar com sua mãe:
-E agora? Que devo fazer? Devo desistir? Preciso cancelar esta apresentação para não magoar meu pai? A pulsação acelerada não lhe dava uma alternativa.
-Calma, filho! Tenho cópia desta partitura que seu pai acaba de destruir. É a (Ode à Alegria) ou o Hino à Alegria, em alemão, (Ode an die Freude); é o nome do poema cantado no quarto movimento da 9.ª Sinfonia de Beethoven, conhecida também como Hino Europeu ou Hino da União Europeia. É uma das minhas favoritas! Ele ficará orgulhoso de você! Dê um tempo! {Nihil obstatt} [Nada impede] a quem tem um grande objetivo para alcançar! Venceremos mais este obstáculo! Você será o pianista da Noite de Gala do Teatro Municipal!
Não desanime! O privilégio é seu! A hora é esta! Seu pai precisa descansar um pouco, pois apresenta uma certa dificuldade para enxergar as notas musicais. Não tem mais a habilidade anterior. Toca com dificuldade em ambientes com pouca iluminação! Agora, precisa ceder o lugar artístico para você que tem uma vida artística pela frente! Com seu avô foi a mesma coisa! Ele foi um pianista famoso, mas não apoiou o talento de seu pai. Quando Agnaldo quis tocar piano. ele também, tentou impedir a carreira artística daquele interessado e inteligente jovem.
Hoje, posso lhe afirmar que a vida é um círculo vicioso. Refletimos com o filósofo italiano Pietro Ubaldi, desde 1992, em “A Grande Síntese: Síntese e solução dos problemas da ciência e do espírito.” Estudamos a Lei das Unidades Coletivas e Lei dos Ciclos Múltiplos, a Consciência e Supraconsciência, a Sucessão dos Sistemas Tridimensionais, nos Caminhos da Evolução Humana.
Ainda bem que a persistência e a boa vontade são primordiais para atingir metas, quase inalcançáveis! A arte é uma expressão suprema da alma humana, uma relação de espírito e pensamento em que o universo fala incessantemente. O segredo de uma grande arte consiste em saber realizar o milagre da revelação do mistério das coisas, à luz dos sentidos, após íntima e profunda comunhão que palpita na alma do artista. E assim, podemos avaliar o quanto as pessoas são imperfeitas! Afinam e desafinam nos diversos
momentos históricos. A natureza cuida de recriar a realidade do círculo infinito com os artifícios das artes.
O ser humano capta da natureza sua tendência à beleza e chega ao conflito na vertente da destruição. {Homo homini lúpus.}: [O homem é o lobo do próprio homem.]
-Mãe, meu pensamento passa por cima das diferentes reações de meu pai que
vê em mim, um obstáculo ao seu sucesso!
-Não meu filho, seu pai tem grandes valores pessoais, artísticos e profissionais.
Esta reação será passageira, tenho certeza! Ele tem um bom coração! Está apenas, vendo sua vaidade ameaçada! Quando existe um objetivo a atingir, o estilo nasce por si mesmo, na mais simples forma, mais transparente e harmoniosa.
Chegou o grande dia da apresentação. O Sr. Agnaldo foi convidado do Teatro Municipal, para receber uma Medalha de Honra ao Mérito, em agradecimento, por tantos anos que fez a abertura dos eventos. Tratava-se da estreia inefável do porvir! Mês de abril! Cenário perfeito para desfazer o conflito entre um pai e um filho.
Quando as cortinas se abriram, um direito gritou ao mundo! Justiça feita! Ademar tocou com precisão a dialógica conformação hierárquica e mostrou a multiplicidade de seu talento. Interpretou [Sonata ao Luar] e [Ode à Alegria] de Beethoven, tão bem, que viu a plateia inteira levantar-se para o aplauso final. A eficácia não abriu a compreensão, no foco observador de seu pai, que continuava assentado, cabisbaixo!
Por um instante, Ademar fixou seu olhar na primeira fila do maravilhoso salão e
sentiu a bipolaridade da consonância marcante! Seria possível dizer que, a conduta paterna revelou-lhe o “tapa de luvas” bem afinado?
-Não! Não me cabe julgar!
De repente, contaminado pelo aplauso incessante, ao seu filho Ademar, o Sr. Agnaldo levantou-se e enxugou tantas lágrimas quentes, que tentava esconder de sua esposa ao lado e dos amigos presentes! {Tempus longum vitiat lapidem}: [Tudo passa sobre a terra.}
-Agnaldo, você rasgou o papel das notas musicais, mas não conseguiu tirar a sensibilidade do gênio Ademar, que temos em nosso lar, resmungou D. Agnes.
-Sim, minha querida! Quis vingar-me de meu filho, mas a vida agregou-se concretamente a ele. Tive medo de que Ademar me superasse ao piano! Isto posto, vejo a realidade saltar aos meus olhos!
-A problemática da perfeita execução dominou todas as sensações provisórias de seu coração. A música dominou o ambiente e todas as mentes, disse Agnes. Os acordes finais, os afetos latentes evolutivos, permanecerão vigentes, em outras apresentações que hoje, abrem novos caminhos de alegria e emoção em nossa casa!
Não podemos ver Deus, mas podemos sentir e ouvir Sua presença no trovão, na torrente, no mar, nos ventos, na paz na terra! Se possível pudesse avaliar, acredito que Deus esteve presente no Teatro Municipal! A vingança também surge da dor! {Omnia fert aetas}: [O tempo tudo traz.]
Mozart deixou a amostra de que a “razão não pode conter a erupção de sua presa, a contingência do inusitado.”
Entendo por arte a expressão dos princípios que estão na harmonia da lei e são verdadeiros em todos os campos, seja literatura, pintura, escultura, arquitetura ou música. A música como tudo o mais, evolui em profundidade. Sua dimensão linear de melodia, para a dimensão grandiosa da conquista do espaço e do volume da sinfonia.
-Nosso filho teve disciplina e não viu a noite tão distante do amanhecer, disse Agnes. Ele venceu e convenceu a todos que seu talento merece todo o respeito. Ainda posso ouvir o público, em pé, gritando “bravo”, “bravíssimo”, durante os intervalos do brilhante e inesquecível show!
A abertura da Noite de Gala do Teatro Municipal do Rio de Janeiro continuou mostrando outras faces da racionalidade, entre o conflito constante na difusão do exasperado e do harmônico, do verso e do anverso, da moeda lançada ao bel-prazer, da natureza que dá seu maior exemplo à humanidade!
As diferentes artes buscam a unificação, em todos os aspectos, no único esforço de exprimir o espírito, na dor e paixão ou alegria para a elevação consciencial. É a oração que une a criatura ao Criador, com as aspirações da alma, de todas as esperanças e ideais humanos. No ambiente artístico, a vibração da música é um meio de sintonização receptiva na oração, reflexão educadora na vida do homem e de todas as criaturas, na sinfonia de concepções cósmicas para exprimir a inspiração sensitiva que vem lá do alto,
na visão do infinito!
Os caminhos e descaminhos podem ser identificados na música e nas formas de regulamentação das condutas das pessoas, em sua historiografia, com intersecções plurívocas e concomitantes. {Quae sunt Caesaris, Caesari.}: [A César, o que é de César.]
Fim
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