Fragmentos de um Passado

Vim ao mundo em meio ao caos. Cresci num inferno, rodeada de medos, privações, abusos, álcool, cigarro, brigas e desrespeito. Forçadamente, tive que me dividir em múltiplas partes e repartir cada pedaço com alguém, e, para mim, nada sobrou.

Em meio ao desespero das minhas emoções, eu me escondia em fantasias. Quando criança, inocente, imaginava um mundo de riquezas. Nada fora do comum, diria até que era muito simples. Inúmeras bonecas, entre elas uma Barbie. Materiais escolares do último tipo, tintas e lápis de cor. Até mesmo uma régua e uma borracha, na minha fantasia, eram luxuosas demais.

Lembro-me de não ter borracha e tentar apagar os erros umedecendo levemente os dedos e esfregando sutilmente na folha. Tinha que ter a força precisa para desfazer apenas uma fina camada do papel, sem rasgar a página. E assim, eu conseguia de alguma forma suavizar o erro e alterar a escrita.

Recordo fortemente de uma vez em que fui ameaçada pela irmã mais velha de um colega por semanas. Lembro da aflição quando os via e do pavor de esconder isso da minha mãe. Eu havia emprestado uma régua do colega e, por descuido, a quebrei. Eu não tinha nem 50 centavos para substituí-la. Lembro da vergonha e do medo que senti naquela situação.

Conforme o tempo se desdobrava, as decepções e dores iam aumentando, assim como os sonhos. Uma casa maior, um quarto só meu, um lençol e um tapete cor-de-rosa. Logo depois, com a idade e as alterações do corpo, eu não queria libertinagem. Eu idealizava um amor. Por anos, platonicamente, sofri por um amor de verão. A cada ano, eu passava lentamente pelos meses aguardando o sol de dezembro. Aquele rapaz moreno, alto e de boa postura esteve em meus sonhos por meia década.

Alimentava meu “amor” com novelas, filmes. Até mesmo A Lagoa Azul me tirou vários suspiros. Eu cresci achando que a fantasia seria possível. Busquei incansavelmente aquele olhar, aquele toque, e acreditei que o beijo teria o gosto mais doce que o mel.

Me perdi nas personalidades de alguns e percebi o quanto as pessoas não se importam se ferem ou não seu coração. A pressão de um ambiente me fez ter meu primeiro beijo. Estávamos num sítio que eu amava visitar, e aquele jovem me seguiu a noite toda. De tanta insistência dele e de colegas, eu cedi. Lembro de fechar firmemente os olhos e erguer as pontas dos pés para encontrá-lo. Senti sua boca, quente e levemente úmida, enquanto ele suavemente levava meus braços para envolta de seu pescoço. Não foi um beijo por amor, mas a delicadeza do momento me fez pensar em como seria maravilhoso adicionar o amor, a paixão, a esse evento. A partir dali, esperei o momento em que eu seria contemplada por essa experiência completa.

Cresci vendo amores ao meu redor, e para mim, nada sobrava. Eu era a melhor amiga de todos, meninos inclusive, mas nenhum me enxergava de maneira romântica. Pelo menos, eu sentia dessa forma.

Com o tempo, adolescência e puberdade, fui compreendendo mais de mim e dos outros. Na verdade, fui vista por muitos, mas para mim, trocas fúteis nunca agradaram. Eu vivia no sonho daquele que tomaria para si meu coração e me levaria até o céu com sua boca.

Mas me ocupei tanto com sonhos, desventuras e obrigações que me esqueci do que era real. Não via nada, nem ninguém.

Até que, num certo dia, consumida por tristeza e solidão, eu o conheci.

Ele apareceu como um espectro de esperança no meio de uma vida cinza, uma figura tão diferente do que eu esperava. Seu sorriso era gentil, suas palavras calmas. Conversamos por horas, dias e semanas a fio como se o tempo não existisse. Mas, ao final daquele ciclo, eu soube. Ele não era o amor que eu havia idealizado por tanto tempo. Não era o herói dos meus sonhos de infância. Ele era real. Humano, imperfeito. E naquele momento, algo em mim mudou.

Percebi que não era o amor idealizado que eu precisava. Não era o beijo perfeito que eu buscava. Talvez, o que sempre faltou fosse simplesmente alguém que me visse. Alguém que não precisasse ser o herói, mas que estivesse ali, compartilhando o peso dos dias, as falhas, as fragilidades.

Estivemos juntos por anos, mas os infortúnios da vida adulta foram mais fortes do que nós. Mas fortes do que eu.

No desespero, eu fugi e em seguida a sensação de solidão voltou, mas agora com uma nova clareza.

Não era falta de amor dos outros. Era falta de mim mesma. E naquele momento, entre o vazio e a lembrança, comecei a entender que a mulher real perdida dentro de mim, esperava ser resgatada. Não por outro, mas por mim mesma.

Ellissa
Enviado por Ellissa em 05/09/2024
Reeditado em 23/09/2024
Código do texto: T8144889
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