PAI E FILHA

Cláudio, sessenta anos, não poderia nem contestar as afirmações de Regina, sua esposa, porque sua memória ultimamente não tem nem pego no tranco. Lembrou-se de que ia de carro deixar Fernanda, sua filha, no colégio. Lembrou-se também que pediu meia bolsa de estudo na Faculdade de jornalismo que ela cursou. Lembrou de que foi com Fernanda à cidade de São Vicente quando a filha tinha 12 anos. Pegaram um teleférico até o alto de um morro na cidade e viram dali, saindo do distante porto de Santos, um transatlântico enorme. Era algo assim do tamanho da cidade, só que cheio de janelinhas coloridas. Os dois ficaram olhando admirados e eram apenas os dois: pai e filha.

Cláudio lembrou-se então de Fernanda ainda pequena, perguntando se na senha bancária do pai havia dígitos em homenagem a ela. Cláudio lembrou-se então do primeiro namorado da filha como também do último. Mas, de qualquer forma, tudo passou muito rápido e houve um estranhamento entre os dois, pai e filha, nos anos da adolescência da filha. Ela não conversava com Cláudio e ele apenas podia deixá-la crescer... e nem isso foi suficiente para uma união na idade adulta. Talvez fosse suficiente se os dois naquele dia, estivessem, não no morro mas no próprio transatlântico e Fernanda virasse para o pai e dissesse: ”Veja pai como estamos no alto e as pessoas da cidade...daqui são pequenas como formigas!” O pai responderia: “Sim, mas tudo não é tão lindo? As pessoas são lindas e o mar é lindo visto daqui com você !”

Se Cláudio fosse um outro pai diria ainda: ”Vamos tentar encontrar o capitão deste navio. Deve ser um senhor de barba grisalha que veste uma casaca azul marinho com botões dourados”. Fernanda responderia: “ Ele tem que usar também um quebe de capitão de navio. Para que todo mundo saiba...Ali vai o capitão!”

Cláudio pensou que ele sim, durante a vida da filha, seria o capitão. Ele cumprimentaria todos os passageiros na entrada do Cruzeiro. Um cruzeiro que percorreria a vida de sua filha e toda a costa brasileira. O capitão saberia o nome de todo mundo e durante a viagem ficaria no lugar mais alto do navio afastando os temporais. Lá no alto, a filha o olharia com admiração e veria os tripulantes cumprimentarem o pai com a seguinte saudação: ”Oh, Capitão! Meu capitão!” mas Cláudio percebeu que não fora muito longe nessa hierarquia naval. Chegou ao seu máximo, como marinheiro de primeira viagem. Certamente lavava os pratos. Uma confusão de pratos amontoados que deveriam ser limpos até a próxima refeição no navio.

Cláudio pensa que talvez para Fernanda bastasse pensar no pai como o motorista de um ônibus que seguisse pela rodovia BR 101, vendo praias pelo caminho. Fernanda poderia se contentar então que o pai, mais do que dirigir o ônibus, orientasse aquela mulher que exercia a profissão mais triste do mundo: a rodo-moça. A rodo-moça queria ser aeromoça. Sua beleza e altura não permitiram e ela terminou ali, na rodovia.

O pai consolaria a rodo-moça pela profissão incerta e ele seria o melhor motorista do mundo. Talvez não do mundo, mas certamente do Brasil e se o pai era tão acolhedor com a rodo-moça, seria também um homem acolhedor com sua única filha.

A filha de Cláudio tem 29 anos e não conversa mais com o pai, nem com a mãe. Esta mágoa talvez seja culpa da mãe. Não, talvez seja culpa dele, Cláudio. Ele não sabe.

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 01/09/2024
Reeditado em 21/09/2024
Código do texto: T8141943
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