Sobre Ventos e Cacos

Nós caminhamos. Lado à lado. Mão com mão. Mas algo me inquieta; talvez seja a mão que seguro – na verdade a que me segura. Cinco dedos longos e delicados me puxam. Mas continuo com a sensação de que há um erro. É o estranho vazio deixado. Não há nada sobre os meus ombros; mas sinto algo: ora leve como brisa, ora forte como lufadas de vento em tempestade. Ah, agora já sei: devem ser aquelas mãos: grandes, sempre ali, e no momento, inexistentes.

Eu paro pelo caminho. Cadarços desfeitos: pronto, agora, sim. Por que soltou minha mão? Cadarço. Ah, bem. Os dedos se encontram mais uma vez.

Estamos agora sob um teto. É uma cafeteria a três quarteirões de minha casa. Uma mulher caminha em direção a mesa de madeira à minha frente. Bom dia. É a primeira vez de vocês aqui? Já escolheram? Mas não ouço nada. Reparo apenas nos cabelos negros como carvão; nos olhos igualmente escuros; nos dois dentes da frente, levemente separados. Ela me lembra M. Depois do transe eu finalmente faço o pedido. A mulher sai. Ele está de volta? Há algo no meu braço? Ah, é apenas o ar da porta sendo aberta.

Consigo me recordar bastante daquele verão, anos atrás. M. encontrou algo no chão. Dez bolinhas de madeira enfileiradas rodeavam uma imagem parcialmente apagada. Parecia um anel, e acabou se tornando. Uso-o desde então.

- Às vezes me pergunto: se você não estivesse tão solitário quanto eu, será se você sequer me notaria?

- Seria impossível não te notar – respondeu com uma voz calma.

Este foi um dos últimos diálogos que tivemos.

Um outro atendente traz meu café com bolo, que volta praticamente intocado. As perguntas de A. são respondidas de forma monossilábica: o café tem açúcar? Sim. O bolo é de limão? Não. De laranja? Não. De abacaxi? Sim. Posso pagar? Sim. Podemos ir? Sim.

A próxima parada é um local que conheço bem. Folhas verdes e copas vastas compõe o visual das árvores; o banco antes prateado possui agora uma coloração alaranjada, coberto quase completamente por ferrugem. Eu estava parada na mesma posição por horas a finco. Inerte. Com um emaranhado de pensamentos de como o vento se fora. A. apareceu e conversamos. Apesar de discutirmos o passado, sentia que o futuro seria ao seu lado.

Mesmo tendo se passado um ano, esta praça não é símbolo de achamento, mas sim de perda. O que era para ser um passeio para relembrar como nos conhecemos somente trouxe de volta memórias incessantes de como algo, ou melhor, alguém, se foi.

Houve, contudo, momentos em que A. me fez verdadeiramente feliz. Ele apareceu no crepúsculo. Uma figura baixa – apenas poucos centímetros maiores que eu – de pele e cabelos pretos; tão diferentes e ainda sim tão iguais. Sua voz fina me convidou para subir em seu veículo. Quando a bela moto azul que nos transportava diminuiu sua velocidade, A. disse para eu ficar de pé. E eu o fiz, com a moto ainda em movimento. Eu me senti livre e viva, de uma forma que não acontecia havia muito tempo. E assim, de alguma forma, os ventos cessaram por um dia completo.

- Eu nunca entendi esse anel que você usa.

Não esperava por essa pergunta. Nunca. Eu a temia, também; porque não sabia a resposta. Qual o sentido de usar algo que simboliza a maior dor infligida a mim? Ah, toda dor se justifica caso houvera amor.

Quando A. se afasta para observar o inseto que voa à nossa frente, é quase como uma materialização do ar. O cabelo é exatamente igual; a postura é exatamente igual; até o modo como posicionam os pés: levemente abertos para fora é igual. Seria um padrão? Não se pode confundir uma voz grossa e rouca com esta que me fala sobre os planos para amanhã. Tampouco o visual: P. nunca usou mocassins. É difícil entender se o que me atrai em ambos são as sutis semelhanças ou as evidentes diferenças.

O que fazer agora? Siga seu coração. Seguir meu coração? E se meu coração estiver desfeito em mil pedaços, qual deles devo seguir?

O sol começa a desaparecer. A. me leva de volta para casa. Mesmo estando pilotando à minha frente, eu posso sentir seu sorriso ao falar sobre nós. São em momentos como esse que me sinto mal. Eu tenho o que todos querem, mas parece que só me contentaria com o que nunca poderia ter.

Quando finalmente chegamos em nosso destino. Dou-lhe um abraço de despedida. Esse perfume não é nem um pouco parecido com o que eu dera para M. muito tempo antes.

- Eu me preocupo com você de verdade. Eu quero que você fique bem – é o que ele diz antes de ir.

Contudo, não entro em casa. Sento-me na calçada. Não há carros. Não há passantes; não há nada além da luz emitida pelos postes. O vento me atinge como nunca antes. Consigo sentir que um temporal está à caminho. Ah, espere: vejo um caco no chão.