EM COMUNIDADE TUDO SE SABE
Marcelo nascido e criado no acidentado relevo da favela da Rocinha, nunca foi aluno exemplar, conseguia ir passando de ano, mais em função da facilidade que hoje o ensino fundamental proporciona a quem frequenta a rede pública municipal de ensino, do que propriamente a dedicação ao estudo.
Sua família, formada por Seu Protásio e Dona Esmeralda nunca deram realmente muita importância a formação acadêmica, afinal, se consolidaram como comerciantes bem sucedidos, segundo parâmetros da comunidade, com apenas o antigo primário completo, e já levam vida confortável faz tempo.
Deram sorte, quando chegaram numa Rocinha ainda em processo de formação, conseguiram logo delimitar uma área próxima a principal artéria da comunidade, a Estrada da Gávea, que na década de trinta fazia parte de perigoso circuito de automobilismo, que incluía também logradouros dos bairros do Leblon e da Gávea.
A casa construída inicialmente para moradia, contava com um avantajado e bem tratado quintal, gradativamente tomado da mata virgem. Plantaram variadas frutas e uma pequena horta, e em pouco tempo vicejavam árvores frutíferas e também um bem montado galinheiro, tudo ainda delimitado pela intocada floresta da Tijuca, que naquele momento amedrontava a todos, graças a cobras e lagartos que buscavam o calor do sol no quintal de Dona Esmê, como era mais conhecida no local.
Começaram a vida timidamente comercializando frango, ovos e geleia das frutas de época, para um ainda diminuto público de baixo poder de compra.
Mais tarde, com o contínuo adensamento da favela, ergueram nova casa nos fundos do terreno, transformando a velha numa bem adaptada birosca, e diversificaram a oferta de produtos nas prateleiras. Logo precisaram de mais espaço para o público, e ergueram o segundo pavimento para servir de escritório e depósito.
Seu Protásio católico devotado, era pessoa querida na comunidade, sempre contribuía para melhorias na igreja, patrocinava um time de futebol local e uns moleques que surfavam como poucos, ali na vizinha praia de São Conrado, que apesar de poluída pelo esgoto da própria Rocinha, apresenta boa formação de ondas para o surf.
Marcelo, ao contrário dos filhos de seus amigos, fazia o gênero caseiro, e adorava colaborar e dividir com a mãe afazeres domésticos. Não se importava de ocasionalmente cozinhar para a família, e que tempero diferenciado ele conseguia combinar, até mesmo aquela refeição do almoço, mesmo que repetida á noite, passava despercebida, devido a habilidade do moleque.
A família sabia que seu futuro seria mesmo atrás do fogão de algum restaurante badalada lá embaixo, no asfalto.
Marcelo, em uma das constantes conversas com a mãe, fez uma revelação sincera, não se sentia bem no corpo masculino, e que gostaria de começar um tratamento hormonal, e assim restringir o nascimento de pelos, principalmente no rosto e não sofrer a alteração na voz delicada que tanto apreciava.
Inicialmente com apoio apenas de Lena, uma amiga inseparável, filha de outro comerciante local, e agora contando com o silêncio da mãe, começou o tratamento hormonal para repor substâncias como o estrogênio e os antiandrogênicos.
Com o passar dos meses, seu pai começou a estranhar o comportamento de Marcelo, sempre rodeado de meninas e agindo como se uma delas fosse. Deixou o cabelo crescer e logo usava roupas com estilo e padronagem feminina.
Em seis meses Marcelo, conseguiu oficializar seu nome social, apenas com a substituição de uma singela letra, o por a, e as mudanças físicas já podiam ser percebidas, a pouca barba sumira de vez, sua voz ficara mais aguda e os seios brotavam. Tomou então a decisão de se vestir como mulher.
Em casa, brigas homéricas entre Seu Protásio e Dona Esmê começavam e não tinham mais fim, ele querendo interromper o tratamento de Marcelo, e ela apoiando a atitude da agora Marcela.
O acompanhamento psicológico oferecido gratuitamente pela prefeitura dava segurança para Marcela, que por mais incrível que possa parecer, teve aceitação irrestrita no meio acadêmico, com suas colegas de turma a protegendo de um possível ataque homofóbico de algum coleguinha.
Não demorou muito para que a história de Marcela, agora com 19 anos, chamasse atenção, por ser considerada a trans mais charmosa do morro, e logo se espalhasse por cada beco da favela, e claro, despertasse a curiosidade de muita gente.
Muitos dos novos fregueses de Seu Protásio acorriam ao mercadinho na expectativa de ver de perto Marcela, e se fosse possível saber mais sobre sua transição de sexo.
Dona Esmê, tomou a providência de retirá-la imediatamente do balcão em seu expediente vespertino, depois que retornava do colégio e almoçava.
Essa popularidade do menino que virou menina, chegou também ao chefe do tráfico, que no morro é uma espécie de déspota esclarecido, em sua curiosidade não contida, ordenou a um de seus capangas que trouxesse a menina até ele, gostaria de conhecer de perto essa pessoa que mobilizava naquele momento a comunidade.
Marcela foi conduzida ao alto do morro, e não criou problemas para atender ao pedido, ela também nutria uma curiosidade em se aproximar de Gabiru, que apesar de baixinho, tinha fama de mulherengo, e também de oferecer presentes valiosos as namoradas.
Quando se conheceram não teve entretanto, foi amor a primeira vista levado aos finalmente. Marcela entrou de cabeça nesse relacionamento bandido. Foram três dias intensos, onde até o gerenciamento do tráfico ficou a deriva. Nem o desesperado apelo de sua mãe e confidente ao celular a demoveu da ideia de abandonar aquela aventura sem futuro.
Faltou sorte aos pombinhos, em meio às chamas daquele amor incandescente, aconteceu o pior, a invasão da favela pelo comando vermelho, que eliminou um a um, todos soldados vinculados ao exército do Gabiru, reservando a ele e a namorada um verdadeiro esculacho, que deixou seus corpos mutilados, antes do tiro fatal na têmpora
A experiência sexual de Marcela acabou sendo desenfreada e curta, muito próxima àquela vivenciada por líderes do tráfico.