Para Falar de Amor

Quem sabe em muito tempo, quando o mundo for ruína e esse quarto não mais existir, encontrarão enterradas nossas cartas de amor apaixonadas?

Se eu pudesse parar o tempo bem agora, e nunca te deixar partir...

Dos momentos que passamos juntos, lembro-os com tanta doçura, meu corpo se aquece.

O dia em que chorei de amor: meu austero pai chegava de uma reunião da construtora. Sabia que se ouvisse meus choramingos ruidosos seria impiedoso. Em anos de convivência desarmônica, sentou-se ao meu lado, enfim, e me afagou a cabeça. Papai reconhecia aquele tipo de choro, um clamor do coração. Então, pôs-se a lacrimejar também e me contou que também amara. A moça em questão se chamava Ofélia, e para minha surpresa, não era a minha mãe. Cantaram karaokê juntos e dali para frente, cantaram também a canção da esperança. Lamentava-se pelas coisas terem sido como foram, por não ter tentado mais um dia, pois isso significava ter mais um dia com Ofélia. Como havia sido uma criança, permitiu-se ver seu grande amor percorrer a saída pouco a pouco.

Comensação: criei essa palavra, que não significa, na verdade, nada. Usei-a para tentar expressar meus sentimentos em uma conversa muito delicada. A insatisfação de uma vida sofrida me agoniava. Preocupava-me em como pagar a conta de energia. Sentia uma comensação, uma mistura de ansiedade e angústia desenfreada, que me impediam de ser franco com o amor. Deixei-o escapar por dentre os dedos, mas por vezes o mantive no mindinho. Glória estava comenserada, não suportava mais minhas distancias repentinas. Perdera já um pouco de sua disposição de apaixonada, no entanto apostou, mais uma vez, todas as fichas em mim. Comenserávamos, os dois, que se consumiam em silencio, cada um de seu lado soprava a chama do amor, até que se apagou.

Das segundas chances: as crenças dos supersticiosos são sobre não passar sob a escada e de desprezar gatos pretos; a dos apaixonados, de que pares são pares. Glória era uma romântica incurável. Eu passava os momentos sem ela em uma tristeza tamanha. Recebia, de sua parte, tentativas diversas para que déssemos mais uma chance para nosso amor, mas eu me prendia. Não conseguia falar, acabávamos em uma série de desencontros. Até que em uma viagem de ônibus, adormeci. Tive um sonho lindo, em que ela me abraçava e nunca nos separamos. No instante em que acordei, ainda a sentia ao meu redor. Portanto, foi minha vez de procurá-la.

Casamento: como esperado, aos vinte e oito anos, em um dia de junho, o mês dos casamentos, uni-me no altar com uma mulher, que é claro, não era Glória. O real demora e cansa, mas na época não sabia disso. Minha esposa e eu casamos poucos meses após Glória me deixar, sentado na porta da minha casa a chorar por sua partida. O relacionamento foi tão natural e simples, que parecia o certa a ser feito. Entretanto, não mais me inspirava a escrita. Com Glória, se foi meu dom. Foquei-me nos outros lados da vida, fui pai, e vi também o meu partir.

A velhice: tornei-me um velho ranzinza. Irritava-me com meu filho e esposa com facilidade. O apartamento de apenas um quarto em que morávamos os três parecida sempre menor, sentia o sufoco da rotina. A memória de Glória ainda me afligia em momentos de fraqueza, mas logo afastava. Amei, claro, minha esposa, contudo, insistia em remar rumo ao passado. Vivia acomodado, no entanto, apesar de tudo, consideravelmente feliz. Não parecia um dia anormal quando ouvi um som alto vindo do banheiro. Agarrei-me a fé nesse período e nos próximos meses no hospital. Era inacreditável que minha esposa iria por um acidente tão simples. Mas assim foi e não houve nada que pudesse fazer. Fiquei tocado com sua morte, pois, não obstante vivêssemos mais uma amizade harmônica que um casamento de fato, amei-a.

Para falar de amor: no funeral compareceram poucas pessoas, entretanto uma delas me lembrava bem. Nem seu rosto envelhecido e os cabelos brancos seriam capazes de apagar a memória daquele amo tamanho. Dar-me-ia, afinal, quantas chances houvesse, porque era pra ser. Sei que pareceu precipitado, mas foi inevitável. Sob a cruz da igreja, revelamos nossos sentimentos. “Vim, meu querido”, disse Glória, sem medo, “para falar de amor”.