Recomeço

O som ressoava entre as paredes, buscando seu caminho rumo à liberdade. Propagava-se, difundia-se, refletia-se, ressoando em inúmeras vidas...

“ Ingrid Vale”

Todas as tardes, ele se sentava em sua varanda, um alpendre amplo adornado com lírios na entrada e uma aconchegante cadeira de balanço. Ao lado, uma pequena mesinha abrigava uma vitrola que tocava "O Cisne", de "O Carnaval dos Animais". Esse hábito era mais que uma simples rotina. Todas as tardes, eu encontrava o Sr. Gerson sentado, com um sorriso amplo, ouvindo aquele som puro e genuíno.

Sempre acreditei que a música são canções da alma, movendo-nos em sua mais simples sinfonia. Minha mãe sempre amou música. Como bailarina, era comum eu chegar da escola e encontrá-la dançando sozinha, livremente, ao som de uma bela música clássica. Adorava aqueles momentos íntimos, onde existíamos apenas nós duas, sem nenhuma interferência. Mas descobri muito jovem que nem tudo dura para sempre. A brevidade da vida às vezes nos surpreende, tirando-nos aquilo a que estamos acostumados. Minha mãe faleceu em um acidente de carro, voltando de uma apresentação com sua companhia de dança. Outros ficaram feridos, mas apenas a vida dela foi ceifada naquele dia. Como ela era mãe solteira, sem parentes, fui enviada a um orfanato aos 10 anos. Fui adotada e devolvida por diversas famílias. Esta é minha última casa, minha sexta família, agora aos 16 anos. Não culpo aqueles que desistiram de mim. Afinal, quem em sã consciência gostaria de adotar problemas, traumas e decepções? Há muito tempo, perdi o prazer pela vida. Aprendi que respirar é a única coisa que me resta, sem sonhos ou esperança, apenas respirar.Ultimamente, os conflitos dentro da casa dos Foster se tornaram ainda mais intensos e constantes, mas o que me irrita é que eles ainda não desistiram de mim. Não consigo entender por que insistem. Talvez se enquadrem no perfil das pessoas que não possuem juízo perfeito e estão à procura de problemas ao invés de paz e tranquilidade. Certa vez, ouvi dona Beatriz conversando com o senhor Félix sobre mim.— Não podemos mandá-la de volta, Félix. Ela não é um objeto que pode ser devolvido ou trocado por apresentar defeitos. Ela é uma jovem, uma vida, e precisa ser amada.Os olhos de Félix se anuviaram, e uma imensa dor passou por eles, antes de ele a esconder sob uma máscara impassiva. Ele se aproximou da esposa, puxou-a para um abraço e beijou o topo de sua cabeça.— Eu te amo, Bia. Me desculpe, você tem razão.Enquanto ele a abraçava, passei o mais furtivamente possível em direção às escadas. Subi pé ante pé, silenciosamente, entrei no quarto e fechei a porta. Recostei-me contra a parede e suspirei. Até aquele instante, não havia percebido que estava prendendo a respiração. Reflito sobre a cena por um tempo, repassando as palavras de dona Beatriz e o olhar de Félix. Quando ergui a cabeça e olhei para o espelho acima do criado-mudo, vi refletido nos meus olhos os mesmos olhos de dor.Saí do quarto e fui ao banheiro. Lavei o rosto umas duas vezes, olhei-me no espelho, passei um batom que estava sobre a bancada junto com as maquiagens de dona Beatriz, e ensaiei o mais belo dos sorrisos. Repeti o processo cinco vezes, até me convencer de que aquele sorriso era real. Ainda não havia aprendido uma forma de melhorar o olhar. Por vezes, tentava acreditar que ele expressava alegria, mas no fundo sabia que não era real. Se um tolo se desse o trabalho de me olhar, veria meu total fingimento. Mas, felizmente, há muito tempo ninguém me olhava de verdade, e uma maquiagem bem-feita e um sorriso forçado podem esconder a mais profunda dor, ou ao menos tentar. Desci as escadas e fui em direção à porta. Quando estava prestes a abrir, ouvi dona Beatriz me chamando para almoçar. Não olhei para trás, tampouco respondi; apenas saí em silêncio.Sei que talvez esteja sendo dura demais com eles. Sei que perderam um filho há cerca de dois anos, para o câncer, um jovem de apenas 14 anos, com um futuro brilhante. Mas isso torna tudo ainda mais difícil. Sinto como se estivesse roubando a vida de outra pessoa, com uma família incrível e maravilhosa. Não é justo eu vivenciar isso, não é justo tomar posse de algo que não é meu. A vida que eu tinha foi levada e encerrada há seis anos, quando minha mãe deu seu último suspiro. Desde então, eu apenas sobrevivo, pois não tenho coragem de pôr um ponto final na minha própria vida. Sinceramente, tenho medo do destino que pode ter minha alma, se de fato eu tiver alguma.Continuo minha caminhada em direção à casa dos Foster e, no caminho de volta, observo o Sr. Gerson de longe, como sempre, feliz, sorrindo e ouvindo sua música. Por algum motivo, algo naquela música me atrai e, antes que perceba, meus pés mudam de percurso, levando-me até a varanda. O Sr. Gerson abre um dos olhos, ainda com um sorriso largo no rosto, e diz:— Estava à sua espera. Por que demorou a vir?Olho-o confusa e receosa.— O senhor estava à minha espera?Ele alarga o sorriso.— Sim, minha jovem, todos os dias, desde que chegou.Balanço a cabeça, um misto de ansiedade e frustração me invade. Sinto uma intensa necessidade de dar meia-volta e partir, fechando-me novamente no meu único universo existente: o vazio. Mas a curiosidade pulsa mais alto.— Eu não deveria estar aqui. Deveria ir embora. Sinceramente, não sei o que me trouxe até aqui. Me desculpe pelo incômodo...Ele me interrompe.— A música.Inclino a cabeça, confusa, e repito:— A música?— Sim — diz ele. — A música a trouxe aqui. Ela conduziu seu coração cansado até mim, e por isso eu a esperava.— O senhor não me conhece, não sabe nada sobre mim. Por que diz isso?Ele me olha, ainda sorrindo, mas seu olhar compassivo me deixa ainda mais irritada.— Eu vou embora. Não deveria ter vindo. Desculpe.Enquanto me afasto, o Sr. Gerson tem uma crise de tosse. Ele leva as mãos ao peito, como se estivesse sem ar. Aproximo-me rapidamente enquanto ele aponta para uma bolsa ao lado da vitrola. Pego a bolsa, abro-a e encontro várias caixas de remédios. Ele aponta para uma delas, ainda tossindo. Destaco um comprimido da cartela e o entrego. Ele aponta para a garganta e, em seguida, para dentro da casa. Corro para dentro, encontro a cozinha, pego uma garrafa de água na geladeira e um copo no escorredor sobre a pia. Volto à varanda, encho o copo e entrego-o a ele. Ele bebe a água devagar, com alguma dificuldade. Observo suas mãos trêmulas e o ajudo a segurar o copo e beber. Depois de um tempo, ele melhora. Sua face, antes pálida, recupera a cor. Ele olha firme nos meus olhos e diz:— Obrigado, muito obrigado! E me desculpe se a aborreci. Infelizmente, esse é um dos problemas de ser velho. Com o tempo, perdemos a noção de certas coisas e não medimos bem as palavras.Assinto.— Não tem problema. Me desculpe, reconheço que também me excedi. Não precisava ser tão rude. O senhor vai ficar bem sozinho? Precisa que eu chame alguém?Ele sorri genuinamente.— Obrigado, minha jovem, mas vou ficar bem. Não tenho parentes, mas este velho aqui ainda consegue se virar sozinho.Olho-o desconfiada, mas antes que eu possa dizer algo, ele ri alto. Continuo a olhá-lo, ainda sem entender. Ele abana as mãos em frente ao rosto e faz sinal para que eu me sente ao seu lado.— Escute, entendo sua preocupação e desconfiança, e sei que são justificadas. Quase tive um treco bem na sua frente. Talvez eu não esteja em tão boas condições de me virar sozinho como antes, mas não se preocupe, ok?Assinto, mas é difícil não me preocupar. Um idoso com aparência de 80 anos, frágil, debilitado e sozinho, com certeza não deveria ficar só.— Você é uma boa jovem, com um coração de ouro. Tenho certeza de que ainda será muito feliz.Olho-o, sem saber o que ele vê no meu olhar, quando diz:— Você merece ser feliz, minha jovem, sim, merece. Sei que sua vinda aqui não foi à toa. Percebi todas as vezes que você passou e a música a chamava, mas você não cedia seu espaço para ela, até agora. Nada na vida é por acaso, e se estamos aqui agora, é porque deveríamos estar. Entende isso? — Sinceramente, eu não entendo. — Penso, porém continuo calada enquanto ele prossegue. — Eu me vejo em você, minha jovem. No vazio dos seus olhos, eu me enxergo. Sofia é o seu nome, não é mesmo? — Eu assinto apenas, pois parece que nesse momento é a única coisa que ainda sei fazer. — Eu vi no dia que chegou na casa dos Foster. Eles são um bom casal, a propósito, repleto de feridas, com suas perdas. Mas quem não teve perdas na vida, não é? Uns perdem mais, outros menos, mas a vida é assim, cheia de perdas e ganhos, repleta de tons e nuances, como uma melodia: ora feliz, ora triste. Mas se observar, todas as notas, sejam as dramáticas, líricas ou alegres, compõem uma música. Uma única e bela música. Por mais triste que ela possa ser, seu tom possui beleza, transmite à alma aquilo que ela precisa naquele momento. — Continuo em silêncio, mas por algum motivo meus olhos se enchem de lágrimas. Há quanto tempo não choro? De certa forma, as suas palavras me tocam, e o som que nos envolve a cada palavra diz ao meu coração aquilo que as palavras são incapazes de dizer. Seu Gerson estende as mãos enrugadas e as coloca sobre as minhas. Eu as seguro enquanto ele continua a dizer: — Eu estou morrendo, minha jovem. — Ele percebe no meu olhar a surpresa, e ainda sorrindo, segura firme minhas mãos. — Tudo na vida tem seu começo, meio e fim. Nada na vida é eterno. Às vezes a dor é imensa e não queremos aceitar, mas quando aprendemos a recebê-la, aprendemos a suportá-la. Minha jovem, eu fui órfão assim como você, mas infelizmente não tive a sorte de ter uma boa família que me acolhesse e quisesse brigar por mim. Vivi muito nessa vida: amores, desilusões, decepções, alegrias. Vi e ouvi o que não gostaria de ter visto e ouvido inúmeras vezes. Vi o amor dos homens se esfriar, ao ponto de o egoísmo e a vaidade se tornarem o brilho mais importante. Mas, ainda assim, com tanta infelicidade, fui feliz. Sou de uma época em que o outro era importante, em que a amizade era primorosa, e se apaixonar era maravilhoso. E, embora meu grande amor tenha partido, sem termos ao menos um único filho, e meus melhores amigos também tenham ido embora, continuo a sorrir e me alegrar. — Mas por quê? — O interrompo. — Por que sorrir, se tudo o que me relata é um mar de tristeza e agonia? Não vejo razão para sorrir diante de tudo isso. — Digo aos tropeços, com a voz embargada. — Sofia, preste atenção! Viver vai muito além de perdas ou ganhos. Viver é muito além de existir ou respirar! Viver é entender que tudo o que somos é o que de fato importa; que os instantes e momentos, sejam eles felizes ou não, valem a pena. Pois tudo o que acontece em nossa vida contribui para nos moldar de alguma forma. Não adianta viver pelas dores ou sofrimento. Enquanto olharmos só para as dificuldades e para o que poderia ter sido e não é, deixamos de apreciar o que temos e aquilo que ainda podemos ter. A beleza que acontece ao redor, mesmo em meio ao caos, mesmo em meio à tristeza. Eu celebro a vida porque tenho a oportunidade de vivê-la, enquanto muitos não podem mais, porque vivi alegrias, pude amar e ver o amor que acontece ao meu redor todos os dias. É como uma mãe que dá à luz ao seu filho: por mais doloroso que seja o parto, há beleza ali, e com certeza nada é mais maravilhoso para aquela mãe do que ter o filho em seus braços. Com certeza, gestar não foi fácil: ver seu corpo mudar, sentir os desgastes da gestação. Mas mesmo diante disso, mês a mês, aquela mulher só pensa no filho que espera, na expectativa de sua chegada. E, após o nascimento, também haverá dias de noites insones, preocupações, ao ponto, talvez, daquela mulher não se reconhecer mais e perder até mesmo a sua identidade, pois sua vida deixou de ser prioridade, passando a ser a de seu filho. Agora eu te pergunto: você acha que essa mãe, sabendo que haveria de passar por tudo isso, abriria mão de seu filho, mesmo sabendo das dificuldades que teria para tê-lo e criá-lo? Com certeza, não! É isso que eu quero que você entenda: não há alegria sem dor, não há ganho sem perda, e por pior que seja o nosso sofrimento, ainda há motivos para sermos felizes. Pode ser difícil, trabalhoso, mas se apegar à tristeza não vai ajudar. Aceite as dificuldades que a vida lhe impõe, aceite a dor e aprenda a ser feliz, porque a felicidade vale a pena. — Exalo o ar que estava preso em meus pulmões devagar. Sinto um nó em minha garganta, cada vez mais apertado, mas falo, ainda com dificuldade: — Não é tão simples assim! Eu entendo tudo o que o senhor disse, mas talvez para o senhor tenha sido fácil. Para mim, não é! A saudade dói demais e eu não consigo seguir em frente, pois seguir em frente significaria ter que deixá-la para trás e isso eu não posso fazer! — Seu Gerson fica por um momento em silêncio, e eu acredito que naquele momento venci a batalha, que ele não terá mais nada a me dizer, nem argumentos para me convencer. Começo a me levantar, mas ele segura firme minhas mãos: — Não disse que seria fácil, e nem espero que você a deixe para trás. Jamais esperaria uma coisa dessas. Você sabe por que me sento todos os dias aqui fora e ouço minhas músicas clássicas, em especial o Cisne? — Eu sinalizo que não com a cabeça, enquanto ele prossegue: — Porque era o que Eleonor fazia. Ela amava música clássica, e o Cisne de O Carnaval dos Animais era sua melodia predileta. A primeira vez que fomos a um concerto, escutamos essa música, e ela, emocionada, segurou suavemente minhas mãos. Ali, com aquele simples toque, eu soube que estava perdidamente apaixonado e que a nossa amizade havia se tornado algo muito maior. Nós vivemos muita coisa juntos, e eu entendo bem a dor, minha cara. Sei o quanto é difícil, pois há quatro anos perdi quem mais amava e, com ela, perdi metade do meu coração. Mas, com o tempo, aprendi a viver com a outra metade. Não vou dizer que foi fácil, não é, mas com o passar dos dias a dor dá lugar à saudade, e a saudade traz as lembranças, as boas lembranças. — Meus olhos transbordam de lágrimas, como uma represa que acaba de se romper. Mal tenho forças para falar, quando digo: — Não consigo superar... — Então, não supere. — O olho com os olhos cheios de lágrimas, sem entender sua afirmação. Ele percebe minha confusão e diz: — Não supere, você não precisa superar, mas precisa aprender a continuar. Eu acredito que perdas como a minha, ou as suas, são impossíveis de superar. Como você vai dizer para uma mãe que perdeu seu filho na flor da idade para superar? Eu não superei a morte da minha esposa, e nem creio que um dia você será capaz de superar a morte de sua mãe. Mas você pode aceitar e aprender a continuar vivendo, sendo feliz da forma que ela iria querer que você fosse, e se apegando a tudo o que há de bom, às boas memórias, aos doces momentos, em todos os instantes, principalmente nos dias em que a saudade for maior. Por isso sempre estou sorrindo, porque era isso que Eleonor fazia. Ela sorria para tudo, e via a importância dos pequenos gestos. Ela entendia que as grandes coisas vinham dos pequenos detalhes, que a felicidade precisa ser cultivada, semente por semente, uma porção por vez. Contudo, ela só é capaz de florescer em solo fértil, em boa terra, onde há o amor. Ela era uma mulher incrivelmente especial, e aprendi muito com ela. Por causa dela, eu sorrio o tempo todo, porque era assim que ela vivia. — Levo as mãos ao rosto, na tentativa de enxugar minhas lágrimas, mas minhas tentativas são vãs. Quanto mais eu tento secá-las, mais elas escorrem dos meus olhos. Inspiro e expiro, procurando me acalmar. Quando me sinto calma, digo: — Muito obrigada... Obrigada por dividir comigo um pedaço da sua história. Eu sinto muita falta de minha mãe e, para ser honesta, todas as vezes que passava em frente à casa do senhor, me sentia atraída pela música. Embora eu quisesse negar ou me afastar, hoje cheguei aqui por causa dela, porque essas sinfonias me fazem lembrar dela, me fazem vê-la outra vez. Por isso, há muito tempo, eu não ouvia esse tipo de música, porque me trazia a lembrança da dor, de saber que não mais a veria dançando e sorrindo para mim. Porém, o senhor está certo e, por mais que seja difícil, eu vou tentar ser feliz, como ela com certeza iria querer que eu fosse.– Fico feliz em ouvir isso, minha cara. Você não faz ideia.Levanto-me novamente, mas antes de ir embora, me abaixo e dou um abraço apertado em seu Gerson. A princípio, ele se surpreende, mas sua surpresa dura uma fração de segundos; logo em seguida, ele retribui meu abraço e, naquele momento, sinto uma paz tão grande, algo que eu pensei ser incapaz de voltar a sentir. Agradeço a seu Gerson mais uma vez e vou embora.Quando entro em casa, dona Beatriz está andando de um lado para o outro, e seu Félix está ao telefone. Ele agradece, desliga o telefone e logo em seguida se volta para mim, com o olhar irritado.– Aonde você estava? Quer nos matar de preocupação?Dona Beatriz o olha, leva as mãos ao rosto e suspira pesadamente.– Félix, deixa que eu falo com ela, por favor.Ele a olha ainda irritado, mas mesmo contrariado, assente e fica em silêncio.– Sofia, nós estávamos preocupados. Você tem noção de que horas são? Você sempre chega às 18h quando sai para caminhar, e já passa das 20h. Nós pensamos que havia acontecido algo com você. Está tudo bem? O que houve?Eu olho de um para o outro, e meu coração duro e congelado se aquece naquele instante. Há quanto tempo alguém se importava comigo de verdade? Há quanto tempo alguém de fato me enxergava? – penso. Eu fiquei tão absorta, envolvida na conversa com seu Gerson, e ainda teve o incidente, que não me dei conta de que horas eram. Não agi propositalmente, mas chegar em casa e ver nos olhos deles tamanha preocupação... E por mais que estivessem irritados, eu via afeto ali, um sentimento genuíno, por mim, uma estranha. Aquilo despedaçou todo o resto de resistência que eu tinha. Corro em direção a dona Beatriz e a abraço, mas a abraço de verdade. Ela, na mesma hora, me envolve com seus braços e beija o topo da minha cabeça. Não percebo quanto tempo ficamos assim, até que sinto a presença de seu Félix. Ele nos envolve em seus braços, e ficamos ali, os três parados, em silêncio e abraçados. Então, ergo a cabeça e olho para ambos. Com meus olhos cheios de lágrimas, digo:– Me perdoem, me perdoem de verdade. Sei que não tenho sido fácil, sei que não dei nenhuma chance a vocês, sei que jamais serei filha de vocês de verdade e não quero tomar o lugar de Lucas, mas tem sido muito difícil. Dói a falta que minha mãe me faz, e me sinto mal, como se roubasse a felicidade de outra pessoa, uma felicidade que não mereço. Mas eu prometo a vocês que vou tentar melhorar, porque vocês merecem isso, alguém que retribua o amor de vocês.O senhor Félix passa o polegar no meu rosto e limpa uma lágrima que desce solitária. Ele abre um sorriso afetuoso para mim e olha para dona Beatriz. Ela assente e continua em silêncio.– Sofia, nunca esperamos que você ocupasse o lugar de Lucas, e eu não imaginava que se sentia dessa forma. Sei que a dor da perda é algo indescritível. Sei que não será fácil para você, assim como não tem sido para nós. Mas eu fico feliz em saber que você está disposta a tentar, pois nós queremos, Sofia, aprender a ser seus pais. Jamais queremos ocupar o lugar de sua mãe, da mesma forma que sabemos que você jamais iria querer ocupar o lugar de Lucas em nossos corações. Mas já sofremos o bastante, e acho que já é chegada a hora de nos permitirmos ser felizes. Não só nós merecemos o amor, mas você também o merece. Você merece a felicidade, todos nós merecemos, e eu tenho certeza que, por maior que seja a cicatriz, toda ferida é cicatrizada com o tempo. As marcas permanecem, mas a ferida cicatriza, e não existe melhor remédio que o amor. E, se você deixar, nós iremos nos esforçar ao máximo para amar você. No meu coração tem espaço o suficiente para amar mais alguém além de Beatriz e Lucas.Eu o abraço apertado e choro. Ele afaga meus cabelos, um gesto íntimo e paterno. Eu me sinto acolhida e, pela primeira vez em muito tempo, realmente amada.– Nós nos importamos com você, Sofia. E eu espero que saiba que tudo o que Félix disse é o mesmo que penso em relação a você. Há muito tempo, meu coração estava seco, vazio, mas no momento que você passou por aquelas portas, perdida, machucada e ferida, um misto de sentimentos brotou dentro de mim. Percebi que meu coração já não estava seco, mas ele transbordava por um amor que havia esquecido, um amor que não morre quando se perde um filho, um amor que permanece vivo, esperando apenas alguém para amar. O amor de mãe, minha filha.Eu a olho e vejo um amor tão grande e percebo, enfim, o quão sou privilegiada. Relembro o que seu Gerson me disse, relembro cada palavra, e enfim concluo que a vida é assim, cheia de perdas e ganhos, repleta de tons e nuances, como uma melodia, ora feliz, ora triste, mas repleta de vida e beleza. E, se escolhermos olhar ao redor, não apenas para dentro de nós, não apenas para o que perdemos ou deixamos de conquistar, perceberemos que há um mundo infinito de possibilidades, recomeços, felicidade e amor. Pois o amor sempre será o remédio para a dor, e amar é viver de verdade, suportando, superando, sobrevivendo e entendendo que, perdendo ou ganhando, sempre haverá um novo dia para recomeçar e ser feliz.

Ingrid Vale
Enviado por Ingrid Vale em 11/08/2024
Código do texto: T8126369
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.