MEU AMIGO OZILDO BATISTA
Aproxima-se o teu aniversário (17.07), eis que antecipo teu presente ou castigo. Toma esta obra em tuas mãos e come avidamente, antes que a penumbra da noite, cubra com seu negrume e carregue para longe os poucos dias sobre a Terra que ainda nos resta.
Estes fragmentos e outros tantos estão assentados na Usina de Letras e Recanto das Letras, sites de Literatura dos quais participo, dando pouco e muito recebendo, pois no decurso de alguns alanos, nossas páginas foram visitadas por quase três milhões de leitores.
Pretendo concluir esta obra iniciada em 2008 e que já me consumiram em minutos, muito mais do que a visita recebida nas páginas em que foram depositadas.
Consiga para mim uma pessoa, ainda viva, se existir, para concluirmos a obra a duas mãos, pois só as minhas, já não suportam mais o peso dos anos e das cargas em seus ombros.
Abraços,
Adalberto Lima
AMANHÃ, TALVEZ!...
Amanhã, talvez...
Adalberto Lima – Montes Claros — MG
Distante, geograficamente da cena de um casamento que não aconteceu, Robert contempla da janela do quarto (andar) o Palácio dos Leões em São Luís do Maranhão, uma fortaleza destruída, para que dos escombros nascesse a sede do governo estadual.
Absorto, vêm à memória lembranças dos tempos de colegial e muitas indagações: Por que não abraçou o sacerdócio sugerido pelo Padre José Ignácio? Se o fizesse, não teria passado pelo vexame do impedimento de seu próprio matrimônio. Não, não! Ele sabia que ser padre sem vocação, o tornaria um homem frustrado.
Era sexta-feira.
Robert nada tinha programado para aquela noite. Então, ligou o computador e abriu o correio eletrônico.
Na caixa de correios, um e-mail de Ravenala com arquivo anexo:
Logo no rosto do e-mail, um recado: “Eis aqui, a nossa “Estrela que o vento soprou.” Adicione ou retire texto, se julgar conveniente."
Manuseou o material e alguma coisa em forma de poema chamou sua atenção.
A
Pare
de do
mundo
é azulada,
até onde a vista alcança. O poeta vê além das
nuvens brancas uma aquarela: nuvens amarelas... pássaro
solitário refaz o ensaio de uma valsa. Tudo passa velozmente
no imaginário... Se Fernão olha
a gaivota, não vê
o sol de relembranças
que se põe
atrás
de
su
as
asas
A distribuição do texto dava à poesia a forma visual de um pássaro voando. Mas…Quem seria Fernão?
Ele não se recordava de ter trabalhado este personagem, durante o enxugamento da obra que fizera a duas mãos. Nem conhecia o diário em que Nathalie aparece dialogando com Fernão.
Mais tarde, compreendeu que Nathalie poderia ser a menina do semáforo, de quem Ravenala lhe falara algumas vezes.
Leu a transcrição do diário.
Nele, Fernão dizia que estava sendo perseguido por um disco voador, e Nathalie contestava:
– Para que te quer um extraterrestre?
Calmamente, Nathalie oferecia a Fernão chá–de–jasmim e um comprimido de fumarato.
Robert não conseguiu dormir, sem que antes lesse, de um só fôlego, a obra que ajudara a construir.
Faz tanto tempo!...
Já não se lembrava de alguns pormenores, mas com certeza, havia ali fato novo, mormente, no tocante a Fernão, um cadete da Aeronáutica e seu último voo para conquistar o brevê.
Desligou o computador.
Dormiu cerca de três horas e quando acordou, foi tentado a ler o livro mais uma vez.
— “Sossega, Robert! Hoje é sábado, dia de descanso.” Pensou.
Em seguida, fez um leve quebra-jejum, colocou a cadeira de praia no bagageiro do carro e saiu.
Soprava suave o vento na Praia da Ponta.
Ondas amenas e um sol carinhoso tocavam, delicadamente, a pele salpicada de sardas. Não tarda, a onda mansa e fresca vem beijar os pés dos banhistas.
Morgana põe–se a contemplar o céu carregado de nuvens brancas.
A onda quebra branda, no limite que o Criador impôs aos mares. Chega, depois recua. Deixa quase nua a banhista displicente. Desfaz as longas tranças da loira. E se vai.
Ela olhava, demoradamente, o balanço do mar, sacudindo recordações da cidade em que nascida: o Rio de Janeiro.
Sentiu saudade das aulas do Marista, do Liceu de Artes e de muitas artes e travessuras que fazia, quando criança e adolescente.
– Morgana!
– Bob!...
– Há quanto tempo não ouço alguém me chamar por este apelido!
– Incomoda–se?
– Não, de maneira alguma! Gosto muito. Faz–me lembrar dos tempos de colegial.
Abraçaram–se cordialmente e o beijo dele, propositadamente, escorregou no canto da boca de Morgana.
Ela ficou vermelha. Tremeu. E sorriu levemente.
O resto do dia foi sol e mar; praia, pés na areia, areia nos pés...
Robert enfiava os pés na areia, Morgana também.
Protegidos por grossa camada de fina areia, os pés se encontravam, sem serem vistos.
Mentalmente, Robert tentava estruturar alguma frase, mas, ao longo de seus trinta e três anos, nunca conseguiu fazer um galanteio que viesse a encantar uma pretensa candidata a namoro.
Olhou o céu rendilhado de nuvens e disse a primeira coisa que lhe veio à mente. “A tarde que finda é uma benção que chega e jamais outra igual será vista.”
– Fazendo poesia para nuvens passageiras?
– Estou pensando por que elas estão assim, apressadas.
–Ora! É porque o sol vai se pôr, daqui a pouco.
Lentamente, o sol se inclina sobre o manto das águas, e já só se via a metade de seu rosto redondo-avermelhado.
— Preciso ir – disse Morgana.
– Podemos nos ver amanhã – disse ele assim que o garçom afastou–se.
– Amanhã... Amanhã não sei! Talvez não consigamos vaga nas palhoças. É preciso chegar cedo.
– Darei um jeito.
Nunca um sol de domingo, demorou tanto a aparecer.
Robert chegou antes das oito e acomodou–se. Ocupou uma mesa à sombra da palhoça, em lugar privilegiado da praia.
Morgana não tardou.
Foi chegando de mansinho.
Teve vontade de enfiar os pés na areia. Esconder o pezinho quente e delicado para ser encontrado pelo dele. Sentiu–se uma tola. E não o fez. Mas o próprio Robert cobriu os pés dela com areia da praia e colocou os dele enterrados, próximos aos de Morgana.
Ela sentiu um calafrio percorrer todo o corpo, e, sutilmente, puxou uma conversa para disfarçar a respiração que lhe fazia arfar o peito.
Disse pausadamente.
– Lembras–te de Sivori?
– Sim, nosso ex–colega do Marista.
– Pois é. Ele estava no avião que caiu na Costa do Senegal, em 2009.
– Sivori?
– Sim, ele mesmo!
Robert reviveu a cena do beijo ingênuo que Morgana dera no rosto de Sivori, quando o menino fizera o gol decisivo do campeonato Marista no final dos anos oitenta.
Quanto tempo!
Ela ainda carregava os mesmos traços de exuberante beleza dos tempos de quase moça, quase menina. Agora, agraciada pela pródiga mão da natureza com melhores contornos e silhueta de uma deusa. O Criador concluíra sua obra-prima dando a ela além dos olhos verdes e nariz afilado, também seios pontiagudos e palpitantes.
Robert teria a coragem e paciência necessárias para conquistá-la.
Morgana era o sonho capaz de apagar todos os seus pesadelos. E, naquela hora, tudo que queria dizer não ficou dito, e não diria, a menos que ela decifrasse a linguagem das estrelas.
Ele ainda tramava pousar, furtivamente, seus lábios sobre o arco de cupido dela, quando o próprio Cupido o favoreceu.
Insinuante, Robert tentou apanhar uma minúscula abelha preta que zunia, mexendo as patinhas e sacudindo as asas, entre um e outro morrote da meia taça de Morgana.
– Cuidado! Não se mexa!
– É apenas uma abelha chien, Bob!
– O mel está nos lábios, e esta abelha o procura em teus seios?
– Para, Bob!
Aquela interjeição: “Para Bob!” foi tão doce e suave como quem diz: “não... não pare Bob!...”
Cupido voou. Num bater de asas a abelha chien se foi.
A tarde finda.
O mar sorri nos grossos lábios das ondas.
Banhistas recolheram seus pertences e se retiraram da praia.
– Deixa–me partir, porque a noite é chegada, disse ela.
Morgana jamais fora assim, tão formal. Decerto, queria provocar o engenho poético de Robert, outrora, vencedor de vários concursos de poesia promovidos pelo Marista.
– Aceito a penitência de te deixar partir, desde que tua ausência seja breve como um piscar de olhos.
– Perfeitamente, Romeu. Mas nem tão breve assim. Até o próximo final de semana.
– Posso te levar em casa, Morga?
– Hoje não.
A resposta gerou expectativa.
“Hoje não”, abre precedente para outro dia, sim.
E, a partir de então...
Foram muitos encontros e nem um desencontro. Nenhum atalho os fazia sair do caminho. Tudo fluía com a mesma serenidade com que o regato deságua no rio e o rio desemboca na imensidão do mar.
Chega 17 de julho.
A data tinha um significado especial para Robert, porque naquele dia, ele completava 33 anos.
Sentiu–se aliviado por recordar–se que também era aniversário de um mês do primeiro beijo.
Para os homens, não tem primeiro, nem segundo. Eles só contam o último: o de agora. Já as mulheres guardam as datas do primeiro aceno de mão, do primeiro isso, do primeiro aquilo... E o homem não pode esquecer, nem mesmo do aniversário do cãozinho dela.
Naquela aprazível noite do mês de julho, um restaurante acolhe os comensais, oferecendo–lhes mesas externas com vista panorâmica.
Robert olha as horas e degusta uma caipirinha de limão siciliano.
– Tenho uma surpresa! – disse ele – depois de limpar os lábios com um guardanapo de papel.
Morgana exclama, curiosa.
– Surpresa?
– Surpresa de aniversário. Abra a mão e feche os olhos.
– Posso abrir os olhos?
– Tente adivinhar primeiro o que coloquei em tua mão.
– Uma caixinha perfumada.
– Acertou. Pode abrir os olhos.
Ela abriu.
O susto foi maior ainda ao abrir a caixinha e deparar–se com um par de alianças.
– Noivado? Tão rápido assim!
– Aliança de namoro – disse ele.
– Simulaste bem tua surpresa. Por um momento, pensei que houvesse esquecido o aniversário de nosso primeiro beijo.
– Não há como esquecer – concluiu ele.
Ela sorriu levemente.
– Minha menina passou por uma cirurgia e está de repouso. Nem vou poder comemorar o aniversário dela.
— Sua menina?
— A Suzi, minha cadelinha. Faz hoje dois anos.
– Ela é do dia 17 de julho?
– Sim, sim...
Robert segurou o riso.
Não podia revelar que esta data também era aniversário dele. Que coincidência desastrosa, fazer aniversário no mesmo dia da cadelinha da namorada!
Não podia rir.
Faria um exercício sobre–humano para gostar de gato, cachorro e de tudo que Morgana gostasse, só para agradá-la. Mas... algo no nome da cadelinha o desagradava, Morgana não podia nem sonhar com a outra Suzi. Por certo, esta última, não passava também de uma cadela. Ele jamais imaginara ter duas Suzi em sua vida. Aquela que anda sobre dois pés, já lhe causara enormes problemas. Chegava a provocá-lo esperando dele uma reação mais drástica, com a mais lavada intenção de enquadrá-lo na Lei Maria da Penha.
Robert segurava avalanches de impropérios, até mesmo, e não raras vezes, desviara–se dos golpes de Suzi que, por pouco, não deixava no rosto dele os sulcos das unhas dela.
Sobre a Suzi que anda em quatro patas, ele pouco sabia. Sabia, no entanto que os cães são seres dóceis e têm a capacidade de praticar o perdão, muito mais do que os humanos.
Mal Morgana terminara de consumir meia taça de vinho, Robert tentando esconder sua inquietação, faz o convite.
– Podemos ir para casa.
– Não temos casa.
– Como não! Tens a tua e eu a minha. Vamos lançar a sorte para saber para qual delas iremos. Afinal somos quase casados.
– Assim tão rápido?
– A vida tem pressa.
– Vamos lançar os dados, então?
– Não precisa – disse ele – tive minha sorte grande hoje.
– Como assim?
– Os colegas de serviço preparam–me uma homenagem. E nos esperam em meu apartamento.
Quem romântico! Robert, preparaste uma festa para comemorar nosso primeiro beijo? Pensou ela, guardando para si, as fantasias que passeavam em sua mente e faziam morada no coração.
Na casa dele, os colegas de trabalho o esperavam, ocultos no breu da noite. E, quando as luzes se acenderam, taças de cristal tilintaram em sintonia com um coro de vozes. “Viva os noooivos...”
Balões subiram decorando o teto com diversas cores.
Logo, o jantar foi servido, sem que houvesse tempo para muita conversa.
O Pastor que havia benzido as alianças e dado uma bênção aos anfitriões, disse com a voz firme: “Os noivos estão cansados.”
– Casados?
– Eu disse, cansados!
– Cansados de quê?
– O aniversariante e sua noiva estão cansados de esperar que os convidados se retirem.
Houve uma explosão de risos, seguidos da penumbra de vultos que se retiravam.
– Larga essa vassoura, Morga... Morguinha...
– É rapidinho, vou pôr as coisas em ordem.
– Posso te ajudar?
– Só temos uma vassoura. Recolha as bexigas e as garrafas. Ponha os cristais na pia...
– Deixa que eu arraste os móveis. São pesados demais.
– Lá em casa, sempre carreguei o piano.
Robert recordou–se do piano de cauda da casa dos Castro. Mas com certeza, Morgana falava mesmo era da vida difícil, principalmente, depois da morte dos pais dela, da mudança do Rio de Janeiro para São Luís e da monotonia que é viver sozinha entre quatro paredes.
– Dê cá essa vassoura! Posso não ter me casado com uma bruxa, mas me acho enfeitiçado por ela.
– Bobinho! (^)Eu viveria contigo por toda minha vida, só para me divertir com teu modo engraçado de falar.
Ela encostou a vassoura em um canto da parede, e, enquanto estavam debaixo dos lençóis, Robert contava piadas de improviso, extraídas de qualquer situação do cotidiano comum aos dois.
– Para Bob! Não me faças rir. Se eu perder o controle, acabo fazendo xixi nos lençóis.
Robert riu espalhafatosamente.
Ela riu até chorar. E o riso trouxe uma torrente de água salgada a escorrer entre as pernas.
– Eu avisei. Agora, com licença. Preciso trocar os lençóis da cama.
– Por que me olhas com este olhar de repreensão – quis saber Robert.
– Não vai contar em teu livro nossas núpcias de xixi. Vai?
Robert segurou o riso.
Não queria passar o resto da noite em pé, vendo Morgana trocar os forros da cama.
Lá fora, as águas batiam forte nas pedras, artificialmente colocadas, para conter a ressaca do mar.