LENDA LOCAL, REVISTA E AMPLIADA
Nas incursões inglesas na África para captura de pessoas, para mais tarde serem negociados como escravos no novo mundo, assim que começa a história de Makabi, um negão que se diferenciava dos demais, devido ao porte atlético e altura fora do padrão, obrigando seus captores a olhar para cima, toda vez que lhe dirigiam a palavra.
Na embarcação com destino a Salvador, a tripulação descobriu que o avantajado personagem era dono de habilidades também no campo da saúde, logo o transformando numa espécie de conselheiro. Sem sua ajuda parte da tripulação e um contingente considerável da carga, no caso seus colegas, teriam partido quem sabe para uma melhor, não fosse à pronta intervenção de Makabi.
No porto de Salvador, o retiveram a bordo por mais tempo, e assim conseguiram recuperar a saúde de parte da carga, que chegou ao Brasil em condições precárias. Apesar de negro, toda tripulação mantinha um respeito inusitado para esse escravo especial.
Sua fama de curandeiro se espalhou pelo porto, que mais tarde propiciou bom valor de venda para ingleses, que dominavam esse vantajoso comércio intercontinental de seres humanos.
Coube ao capitão Pina, donatário das terras de Igatu, na Chapada Diamantina o melhor lance no leilão daquele escravo especial. Quando retornou a sede da fazenda com a comitiva, Makabi foi separado dos demais, indo ocupar pequena moradia nas cercanias da casa grande, os demais foram encaminhados à senzala.
No princípio, capitão Pina deixou Makabi livre para atender seus parceiros, saía frequentemente para colher folhas, cascas e raízes, que mais tarde serviriam para o preparo de uma infinidade de medicamentos naturais. O curandeiro ficou impressionado com a similaridade da flora local com a que conhecia do outro lado do Atlântico.
Passado algum tempo, pediu permissão ao capitão para ampliar seu casebre, não tinha mais espaço para tanta colheita, que diariamente ampliava seu acervo.
Sinhá moça, filha do capitão sofria os incômodos de uma constipação, que lhe acometia desde a mais tenra idade, e não havia remédio que resolvesse o problema, foram muitas idas a Salvador a procura de médicos, as soluções eram sempre parciais, e a prisão de ventre retornava.
Numa conversa com Makabi, o negro sugeriu o uso de uma combinação de raízes, pois o caso era renitente. Mesmo descrente, o capitão aceitou a sugestão, e levou a cabo as indicações do curandeiro.
O resultado foi imediato, e daí pra frente, toda casa grande passou a ser cliente daquele habilidoso misturador de componentes, que resolvia com categoria da simples dor de cabeça, passando por infecção séria, que volta e meia acometia escravos.
Capitão Pina passou a ter consideração especial pelo negão, que indiretamente aumentou a produtividade da fazenda, a partir da redução significativa da mortalidade no plantel de escravos.
Foi numa daquelas quentes tardes de verão, que Ritinha saiu para uma cavalgada e um refrescante mergulho no Rio Paraguaçu, onde ao acaso se deu o encontro com Makabi, que procurava aquelas refrescantes águas para relaxar, depois de mais uma extenuante busca por novidades, numa região ainda não explorada. Cansado, resolvera se banhar no rio, e naquele momento tirava um cochilo, à sombra da figueira.
Ritinha, via pela primeira vez um homem pelado dormindo, sentou perto e ficou apreciando aquele evento único. Foi com um susto o seu despertar, perplexo quando se deu conta que a moça que lhe encarava era nada menos que a filha do patrão.
Permaneceram muito tempo em silêncio, olho no olho, e surgiu a vontade mútua de se abraçar, e aconteceu um abraço longo e prazeroso. Quando ambos relaxaram, Ritinha queria falar alguma coisa para quebrar aquele silêncio, que agora a perturbava. Veio então um sincero agradecimento, graças a ele seu intestino passou a funcionar.
Outros encontros furtivos aconteceram sempre num recanto às margens do Paraguaçu, um local de difícil acesso, e por isso mesmo ideal para seus encontros furtivos.
Essa rotina de sumiço de ambos acabou levantando suspeitas, e logo, um escravo seguiu Makabi à distância, e acabou descobrindo a razão de seus constantes sumiços.
O olheiro não titubeou, foi direto ao capitão Pina relatar o fato, visando com a notícia, auferir alguma vantagem. Chamado as pressas pelo patrão, relato concluído, Makabi manteve sua tranquilidade, explicando que o referido escravo passava por forte depressão e estava rejeitando o tratamento indicado, e, portanto naquele momento sujeito a alucinações esporádicas.
Então, tudo permaneceu como dantes no quartel de Abrantes, foram às cozinheiras que serviram de pombo correio para o casal. Sabiamente optaram por dar um tempo na relação.
Em uma semana, ambos estavam cabisbaixos, sumiu até a vontade de comer, horas de sono se confundiam entre noite e dia.
O capitão podia ser qualquer coisa, menos burro, juntou fatos e chamou dois capangas de sua segurança nas constantes viagens pelo sertão baiano.
Para sorte de Makabi, Ritinha, ouviu a ordem de dar um imediato fim de papo para o Negão. Novamente foi uma das cozinheiras, que conseguiu chegar a casinho de Makabi, e lhe dar a fatídica notícia, trouxe também um singelo presente de Ritinha, Tratava-se de um avantajado guarda-chuva rosa com beiral branco.
Naquela mesma noite o curandeiro partiu, conhecia a região como poucos, e antes do amanhecer estava longe de Igatu, e sem deixar pistas de que direção tomou.
Com mais de uma semana literalmente metido no mato e se alimentando de pequenos animais e plantas comestíveis, que conseguiu chegar à região hoje conhecida como Palmeiras, e foi se instalar no alto de um morro.
Não demorou muito tempo quieto, logo começou a atender pessoas das proximidades, e subir o morro foi a saída para muita gente resolver problemas de saúde. Para locais, se identificou como Inácio (aquele que tem origem no fogo), logo virou Pai Inácio, que além de curandeiro, exercia também a função de conselheiro.
Deve ter sido algum garimpeiro, que ao cruzar a região, tomou conhecimento das curas do Pai Inácio, e isso quem diria, foi chegar aos ouvidos do Capitão Pina, na distante Igatu.
Aqueles mesmos capangas, que se frustraram na busca anterior por Makabi partiram a cavalo no dia seguinte de Igatu, com a obrigação de liquidar o curandeiro e trazer sua cabeça, para mostrar o destino final de escravos fugidios.
Uma semana depois, ainda pela madrugada começaram a caminhada até o cume do morro, onde Pai Inácio atendia clientes.
Rendido pelos capangas, correu para a ponta do precipício declarando que preferia se suicidar, a ter a cabeça exposta em praça pública, como punição a sua fuga. Tendo em mãos o guarda-chuva rosa, saltou para a morte.
Os capangas do capitão o perderam de vista, apenas o guarda-chuva continuava sua trajetória em direção ao solo. Os idiotas não conheciam o truque já ensaiado uma vez, para enganar possíveis ladrões.
Abaixo do lugar onde saltou um platô a pouco mais de um metro servia como pouso, uma pequena reentrância na rocha servia como esconderijo perfeito.
Os capangas ainda tentaram durante um dia e meio encontrar o corpo do curandeiro, em vão, apenas recolheram o guarda-chuva para posteriormente ser devolvido a Ritinha.
Nesse ínterim, a capitão sem a escolta dos capangas foi morto numa emboscada de algum outro fazendeiro de olho nas suas terras e na possibilidade de lá encontrar diamante.
Com o retorno dos capangas, Ritinha que já tinha assumido o comando da fazenda, não acreditou nos relatos. Pediu a um tio que comandasse aos negócios, até ela ter certeza da efetiva morte de seu amado. Pressentia que ele ainda estava vivo.
Na vila de Lençóis, utilizou sua influência e até uns caraminguás por notícias do Pai Inácio. Logo, alguém lhe informou o local onde ele ainda dava agora suas consultas, o sopé do morro do Camelo, próximo a sua morada anterior.
Em cerimônia rápida se casaram na vila de Lençóis, e sequer tiveram lua de mel, tinham muitas ideias para o futuro da fazenda, estavam ansiosos por botar em prática algumas ideias que tinha povoado suas mentes, naqueles encontros furtivos às margens do Paraguaçu.
Em menos de um ano, uma verdadeira revolução silenciosa ocorreu no sistema de trabalho empregado, agora a fazenda se transformou em cooperativa, e utilizando a técnica de mutirão casas foram construídas para com dignidade abrigar antigos escravos, e a produção não era mais exclusivamente monocultora de café, a fazenda se tornara auto-sustentável.
E o casal, se tornara coordenador dos negócios da fazenda, e Ritinha já estava na terceira gravidez.