Isso é uma cantada?

Aquele ônibus costumava demorar uns dez minutos para passar. Naquela manhã, a espera era de meia hora, e a fila estava gigantesca. No começo dela, a moça batia os pés, nervosa. Ela recorreu a um jovem barbudo à sua frente.

- Com licença, pode me informar as horas?

- Nove e meia.

- Obrigada - respondeu, exibindo um sorriso irônico.

O homem ficou encafifado e perguntou:

- Algum problema, dona?

- Sua barba.

- Está bem cuidada, mas tem uma parte em azul.

- Sério? Onde?

- Perto do queixo.

- Droga. Pode me ajudar?

- Claro. Coloque o dedo perto da boca, desça um pouco, vire para a direita... - e a moça continuou dando direções.

- Sou péssimo nisso! Tenho uma entrevista de emprego!

- Com licença - disse a moça, passando o dedo na parte azul da barba - Pronto, saiu.

- Sério? Com essa simplicidade?

- Sim. Sua barba é muito macia e perfumada. Parabéns pelo cuidado.

- Obrigado! Seu cabelo também é bem cuidado.

- Obrigada... - respondeu, um tanto tristonha.

O homem notou sua tristeza e disse:

- Meu elogio não foi uma cantada. Sou muito respeitador!

- Eu sei. Você murchou com o meu comentário.

- Seu elogio foi admirável. Pena que este cabelo não é meu. Faço tratamento oncológico. Uso peruca.

- Ah sim. E as sobrancelhas?

- São pintadas, você não reparou?

- Não.

- Você é ruim nisso, hein - disse, rindo discretamente.

- Você é tão bonita que não reparei. Vi todo o conjunto.

- Isso foi uma cantada.

- Não, foi uma análise sincera e minuciosa.

- Agradeço por essa análise com layout de cantada.

- Ainda bem que o ônibus demorou. Pude conhecer alguém que me poupou de ser visto como um ridículo na entrevista.

- Alguém iria avisá-lo.

- Alguém que não teria a sua beleza...

- Você ouviu o que eu disse?

- Sobre?

- O tratamento oncológico.

- Me perdoe, só manjo de números. Isso tem a ver com...

- Câncer.

- Ah, sim. Como está o tratamento?

- Vou fazer a terceira sessão de quimio.

- Sozinha?

- Sim.

- Amigos?

- Não quero incomodar.

- Namorado?

- Quem vai querer ficar comigo nessas condições?

- Bom... posso lhe acompanhar.

- E a entrevista?

- Acordei com a sensação de que não seria um bom trabalho. Nem precisou.

- Não quero incomodar ninguém. E outra... - ela se sentiu mal.

- Você está bem? Quer uma água?

- Quero que isso acabe.

- Vai acabar. Você precisa de ajuda. Tome, comprei essa água mas ainda não bebi.

- Não está batizada? - perguntou, dando um leve sorriso.

- Foi batizada pelo Papa durante a visita dele aqui.

- Essa água está guardada há tanto tempo?

- Tinha que ser aberta numa ocasião especial e dada para uma pessoa especial.

- Isso foi uma cantada?

- Foi uma tentativa. Mas é mentira. Eu comprei ontem.

- Ah... minha ilusão já estava acreditando!

- Mas a questão da pessoa especial é verdade. E sim, isso foi uma cantada.

Nesse momento o ônibus chegou. Os dois entraram, desceram no mesmo ponto, foram ao hospital, voltaram outras quatro vezes e depois não foram mais vistos naquele ponto.

The end.

É só.

Acabou.

È finito.

Es ist fertig.

終わりです

Ah, esqueci de contar: os dois mudaram de cidade e hoje, sete anos depois, seguem juntos.

E sim, o cabelo dela é muito mais bonito do que aquela peruca bem cuidada.

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 29/07/2024
Código do texto: T8117546
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.