O SOL ALÉM DA CHUVA - CAPÍTULO 1

O Sol além da Chuva

Não foi um dia legal. Para variar, Milena fez questão de piorá-lo ainda mais. No início, a ideia da filha ir morar com os avós no interior não soava bem aos ouvidos da ex vendedora de loja de sapatos, mas hoje, com a significativa piora no comportamento de sua única filha, Hortência já pensa na possibilidade de liberá-la. Na verdade, Hortência se vê na urgência de se viver em paz. Paz para pensar, refletir e principalmente, paz para decidir o que fará de sua vida agora que Magno finalmente já não faz mais parte dela.

Após ouvir malcriações e prometer mais uma vez que um dia quebrará um cabo de vassoura nos córneos de sua filha, Hortência sentou-se no sofá para conferir o conteúdo do E-mail recebido antes da discussão. Ela clicou e o documento PDF abriu trazendo um pouco de luz nesse dia conturbado.

Venho por meio desta, informar sobre a resolução do assunto abaixo.

Agora é oficial. Magno Leite e Hortência Passos estão devidamente divorciados. A vendedora não sabia se ria ou se chorava. Conviver com Magno foi um inferno, mas jogar vinte anos de história no lixo também já é demais.

— Eu não estou acreditando. — ligou para Naiara pelo WhatsApp.

— Fala, piranha.

— Saiu! — falou sorrindo e limpando as lágrimas.

— Jura?

— Juro. Vi agora no E-mail. Nossa, eu estou em choque.

— E aí, vai rolar uma comemoraçãozinha?

— Tá de brincadeira? É claro que vai.

Da porta do quarto Milena ouvia a conversa nutrindo seu juvenil coração de furor contra sua própria mãe.

— Que ridícula.

*

Bar lotado. Música alta. Burburinhos e gargalhadas vindas de todos os lados daquele lugar boêmio às vinte duas e trinta de uma noite de quinta-feira com ventos de moderado a fraco. Na mesa da dupla de amigas meia dúzia de latas de cerveja já vazias e muita alegria. Naiara Oliveira, uma jovem mulher de trinta e quatro anos de pura beleza e gostosura. Pele morena e cabelos cacheados muito bem tratados. Hoje em dia, tudo o que ela quer da vida é vivê-la da melhor forma possível, porém sem se esquecer das responsabilidades que a cercam, como por exemplo: cuidar dos pais já idosos.

— Estou feliz por você, amiga. De verdade. — Pôs o resto de cerveja quente no copo.

— Valeu! Deus sabe o quanto sonhei com este dia. — Hortência pegou a última batata frita.

— E a Milena, o que achou de tudo isso?

De repente o que era alegria e descontração se transformou em algo muito parecido com o fúnebre.

— Minha filha infelizmente me acha o pior ser humano em atividade. Milena ainda vai demorar para entender tudo o que aconteceu entre o pai dela e eu.

Ficaram em silêncio.

— E o Magno, falou com ele depois disso? — Naiara perguntou finalmente.

— Não! Mas em se tratando de um homem feito ele, não vou me surpreender se ele resolver aparecer lá em casa ainda esta semana.

— E a senhora por favor procure agir com naturalidade.

— Pode deixar, queridinha. Vamos pedir mais uma rodada?

— Já é!

*

O clima de rivalidade entre mãe e filha ainda pairava no ar daquela cozinha quando ouviu-se o som da buzina do novo veículo de Magno. Milena deixou sob os cuidados de Hortência o sanduíche de queijo com presunto na sanduicheira para recepcionar o pai que ela não via há dias.

— Oi, pai, bom dia. Veio me levar para escola? — o abraçou e o beijou várias vezes.

— Oi, princesa. Sim, mas antes preciso conversar com sua mãe e a sós.

Hortência seguia vigilante quanto ao café da manhã de sua menina. Magno deixou sua maleta sobre a cadeira e aguardou que Milena deixasse a cozinha.

— Recebeu o E-mail?

— O que você acha? — Tirou o pão da sanduicheira.

— Feliz agora? — apoiou-se no encosto da cadeira.

— Sim! Muito. — pegou a jarra de suco de laranja na geladeira. — Milena, está pronto.

— Depois temos que acertar essa questão da pensão…

— Como bom advogado que é, deveria saber que tudo isso é resolvido em juízo. — pôs as mãos na cintura.

— Você realmente quer fazer isso? Acha mesmo que vou deixar faltar alguma coisa para minha filha? Você, eu quero que se dane, mas a Milena é minha prioridade.

— O velho e bom Magno Leite sendo o velho e bom Magno Leite. — meneou a cabeça. — O que veio fazer aqui dentro da minha casa?

Magno abriu a maleta retirando de lá uma pasta com o papel do divórcio. Pegou uma caneta também.

— Assine.

Olhando para o papel e em seguida para o ex, Hortência fez uma curta viagem no tempo, exatamente no dia em que se casaram no civil. Foi durante uma tarde quente de Janeiro com a presença dos pais e dos poucos amigos do casal. Magno na época já dava sinais do homem que se tornaria hoje. Hortência decidiu acreditar que ele mudaria. Esse foi o seu mal, ela sempre acreditou na redenção humana. No fundo ela sabia que estava colocando sua felicidade em jogo assinando aquele pedaço de papel perante o juiz de paz. Hortência assinou e o que era para ser uma cumplicidade se transformou em abuso e humilhação.

— Prontinho! — Lhe entregou a caneta junto com o documento. — É só isso?

— Sim, é só isso. — Pegou a maleta. — Vamos, filha.

Não se deve jogar vinte anos de história no lixo e o que se mais ouve falar por aí é que, relacionamentos melhores do que o dela foram parar no mar do esquecimento. A palavra divórcio não é somente o nome do um documento, é também uma ruptura, uma ferida na alma. Por isso, ao se ver sozinha, Hortência não conseguiu segurar o pranto. A mesa da cozinha que o diga.

*

Certa feita, em uma das poucas noites de inspiração e trocas de confidências, Magno fez com que o coração de Hortência parasse de bater ao declarar que a vida só teria sentido se ela estivesse ao seu lado. Claro que isso lhe rendeu uma longa jornada de puro amor ao longo da madrugada. Mas houve época em que o advogado a fez acreditar piamente que o amor verdadeiro não existia de fato. Magno a magoou pra valer e isso deixou marcas profundas, cicatrizes bem evidentes.

O que há de errado em certos homens? Por que são tão dominadores, abusivos e o que é pior, não são capazes de enxergar a mulher maravilhosa que possuí. Magno sempre demonstrou ser um cara explosivo, ignorante e às vezes até agressivo. Mas nada era tão devastador do que a agressão verbal. Palavras machucam e não tem volta. Por mais que Magno a pedisse perdão de joelhos, como fez muitas vezes, uma palavra lançada com destino a ferir a alma não volta jamais. Hortência por diversas vezes foi para cama soluçando de tanta humilhação. “Sua burra” isso a feria sem dó.

Agora que Magno se foi, Hortência terá que se acostumar a ir a certos lugares utilizando o transporte público. E quem disse que isso chega a ser um problema para ela? Mil vezes ter que andar de ônibus, de trem ou metrô do que ter um veículo do ano e sendo maltratada o tempo inteiro. Pobre sim, infeliz nunca.

— Aulas de gastronomia. — Leu o folder fixado no poste na saída do shopping.

Contato anotado e uma luz na cabeça. Quem sabe uma mudança no ramo não vem a calhar? Hortência sempre amou vendas, mas nos últimos tempos a profissão não a tem atendido financeiramente. Vá que a cozinha não a faça prosperar? Não custa nada tentar.

*

Empolgada com os estudos, Hortência não tinha olhos para mais nada a não ser assistir a vídeos de grandes chefs da alta gastronomia pelo YouTube. O seu preferido e não tinha como ser diferente é Alex Atala. Hipnotizada, ela mal percebeu a chegada de Milena na cozinha.

— AFF! De novo vendo esse cara?

— O que?

— Você não tem nada melhor pra fazer não? — Pegou uma garrafinha de iogurte na geladeira.

— Com quem pensa que está falando? — Pausou o vídeo.

— Eu estou falando com você, Hortência. — Deu um gole.

— Veja bem, garota. Eu nunca entrei numa delegacia, mas, se falar assim comigo de novo…

— Deixa eu ver. Vai quebrar o cabo da vassoura na minha cabeça. Acertei?

— Duvida?

Elas ficaram se encarando por algum tempo e vendo que havia perdido a batalha a adolescente se retirou deixando sua mãe possuída de raiva. Hortência limpou mais uma vez as lágrimas dando play no vídeo.

Abril Rocha
Enviado por Abril Rocha em 20/06/2024
Código do texto: T8089813
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