A vida continua
Laura contemplava a noite estrelada, como a noite da tela de Van Gogh. O céu de inverno, limpo, as luzes no espelho do mar do litoral norte, lhe fora presente dos deuses. Absorta na poesia no firmamento, solitária, se perdeu entre as diminutas estrelinhas, deixando cair o vinho branco e seco na areia. A praia embriagou-se de Laura. Ela deitou, a alma caiu primeiro e sustentou seu corpo cansado. Duas garotas passaram correndo, de shorts e casacos. Fazia frio típico da estação na cidade. Poucas pessoas caminhavam na larga calçada. No ar, o perfume salgado da água, frituras e vinho. A noite estava azul, um pouco melancólica, pois a praia corresponde o inescrutável coração humano.
Há alguns metros, no passado, havia dois apaixonados se beijando, o mesmo mar calmo, o calor litorâneo nos lábios dele, os pés quentes na areia, rastros até a Avenida, pegadas inexoráveis resistiam ao tempo, em sua memória.
A vida continuou, teimosa como a própria Laura. Tão solitária quanto. O que ela fazia lá? O mar havia levado as lembranças para os oceanos, para continentes longínquos, mês após mês, doravante ao adeus? Tantos anos! Não há tempo para o coração. Era o mesmo coração assim como era o mesmo mar. O amor fica na geografia de ambos, em cada local que se manifestou enquanto acontecia, prisioneiros um do outro, loucos por cada segundo juntos, vivos e despedaçados, pelo sexo, as brigas, as pazes, no litoral, no interior, nas cidades em que Laura saltava para longos abraços e declarações eloquentes: “te amo pra sempre”. Os olhos úmidos à frente, girassóis de Van Gogh, embevecidos pela loquacidade de Laura, respondiam ser ela a única. No entanto, Laura nunca acreditou. Suas declarações de amor preenchiam o vazio da insegurança. Ele havia ligado para outra. Laura descobriu e nunca mais foi a mesma. O fim tem começos. Começou o fim.
No Inverno, fazendo amor de casacos, rindo e chorando. O álcool, a insegurança, o ciúme, hostilidades... todos que invadiram seu espaço, de alguma maneira, e o fim previsível. Caótico, intenso e incerto, o tempo todo, imperfeito manifesto num
Amor verdadeiro. Ela sempre partia com lágrimas nos olhos e voltava antes das lágrimas secarem.
Um dia partiu e não voltou mais. Continuaram mantendo contato por aplicativo de comunicação até que ela não viu mais sentido amar alguém que não carecia mais da sua pele. Eles estavam livres.
Mas Laura sabia que a liberdade nunca durava muito. A de ambos durou menos que o namoro. A liberdade era inútil. Ela mesma, agora sustentava o anel simbólico de comprometimento com outro. Ele, certamente, também. Lembrou-se da frase: “Te amo, mas me acostumei a nossa distância”. Ela nunca se acostumara. Ela queria os beijos na calçada, na praia... Queria que pudessem superar o medo juntos, como ele mesmo dissera certa vez: “seremos felizes ou infelizes, mas juntos”. Os dois estavam perdidos e se perderam aos poucos um do outro. A distância era a ínsula fria dos seus últimos momentos. Até que Laura encerrou e deu a ele a liberdade que precisava para esquecê-la. Contato zero. Ficou cada flash das fotos, apagadas aos poucos dos arquivos na rede social, mas indeléveis na memória.
Foi cambaleando ao Hotel, dormiu há alguns metros do quarto que, no passado, ela estava em seus braços. O tempo ficou ausente no instante que vasculhou a recordação. A manhã veio com a memória dos beijos ao amanhecer. A brisa, na costa norte de SP, vislumbrava o vapor do chuveiro envolvendo os dois. Cruzou a Avenida depressa. Era hora de ir embora. Antes, caminhou até à sombra da árvore, a mesma árvore, que ela se escondia do sol para observá-lo correr ao calmo mar, se voltando a ela sempre, como um criança feliz, para acenar. Correu os olhos, fitou cada enquadramento. Escreveu na areia com o indicador: Você ainda se lembra de mim, amor? Em seguida, puxou o celular da bolsa, abriu o Whatsapp. Digitou: “Sinto sua falta. Aqui ainda está meu coração batendo por você”. Tirou uma foto e enviou. A mensagem nunca chegou.
Ele estava bloqueado há 3 longos anos. A foto da praia de Sumaré e as palavras ficaram na janela de arquivos, mas não o recordar do afeto por quem ela nunca mais encontrou. Laura prometeu a si jamais procurá-lo. Ele nunca lutaria por ela, estava na sua zona de conforto, agora com outra.
Ano após ano, Laura voltaria para viver cada lembrança novamente, mas sozinha. Quando retornava ao seu atual namorado, esquecia completamente do seu único amor. Precisava esquecer estoicamente.
Não obstante, no litoral, mesmo fisicamente separados por dimensões, suas almas, por algum mistério, se encontrão para o resto da vida. São uma única.
Laura subiu a serra, o contorno intacto da Tamoios, retornando ao presente.
No tempo que urge, o sol fotografa, em todo cair de tarde, na praia, indenes, os dois. O amor fica na geografia que os amantes estiveram. E a vida continua…
A vida continua!
Inspirada na música “Recuerdame – de Laura Pausini