A balconista da lanchonete

café tomei. lá fiquei para enrolar a hora. e te vi. no balcão. servindo expressos, expressando leveza. vendendo pingado, respingando em mim um encanto solúvel, nada volúvel. fiquei tão boquiaberto que agi feito bobo. melhor, não agi. apenas vi, vi, vi, vivi dentro de um sonho feito naquela hora e perdi os passos largos dos minutos. atrasado, paguei a conta, mantive o encanto mas não consegui perguntar teu nome. travei, feito coador entupido, depois de tanto saborear o café puro. ali, travei depois de fartar meus olhos com tua pele cafeinada e perfumada. corri para não ouvir gracinha no trabalho, mas os comentários sem graça foram inevitáveis. durante o expediente, só pensei na tua presença que deveria cruzar os meus dias entrelaçados desde a minha nascença. não sei de onde tu viestes, mas naquele bairro eras novidade. foi por isso que voltei no dia dois, tentando reprisar o fascínio que abençoou minhas retinas depois do dia um. mas tu não estavas.

nem no dia três.

nem no quatro.

nem no oitavo, décimo segundo, vigésimo sexto.

perdido, deixei meu estômago aturdido de tanto beber café, que àquela altura perdera o gosto, ficando frio e frívolo.

‌ há bastante tempo que não me sentia tão estranho. o que tomava meu juízo não era tristeza ou desencanto. era algo rascante, forte, quase etílico. parecia que a gravidade me fizera de marionete, tamanha a gravidade da minha atitude pusilânime de não falar contigo, moça do café. que ali ela era apenas sumiço, tortura, sentença, lenda, just a ghost, un'ombra giusta.

‌admitindo enterrar aquela severa esperança, deixei de frequentar a cafeteira. era melhor assim. não aguentava mais olhar aquela esquina e só enxergar pessoas luxuosas e prédios bem vestidos. já bastavam as promissórias, promessas e premissas que pressionavam minha paz durante do trabalho. eu era muito novo para ficar louco e muito sonhador para virar peça decorativa da vida. óbvio que fácil não foi. mas não fui para lá. troquei o café pela cana. não a cachaça. e sim a cana de açúcar.

eu tinha mil opções melhores na região. bistrô, bomboniere, pâtisserie, adega, cantina, delicatessen. mas escolhi uma lanchonete que vendia caldo de cana...

...e tu estavas lá, no balcão, naquele lugar humilde, entre salgados feios e pizzas dormidas, fazendo ressurgir em minha mente todos os sonhos pausados e todo passado não dito.

continuei sem nada dizer. apenas escrevi um bilhete com quatro guardanapos, deixei perto do caixa e saí de fininho. do outro lado da rua, numa padaria, pude ver tua alegria estampada num sorriso. e a partir dali, comecei a acreditar na complacência do acaso, que me levou - sem querer - a te reencontrar ainda mais bonita.

e assim continua sendo, ao reter várias virtudes imponderáveis, anos depois do dia um, para deleite do meu coração, que ama teu beijo de café.

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 14/06/2024
Código do texto: T8086017
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