INSEPULTO
INSEPULTO
Movido pelo ímpeto desafiador natural da juventude, decidi peitar a natureza, travando com os seus principais elementos uma descomunal batalha. Expus-me à fúria do sol, dos ventos e dos temporais; enfrentei o frio glacial das montanhas andinas; mergulhei em águas geladas, turvas e profundas. Não nego que em algumas ocasiões o medo me fez companhia, mas sempre que isso acontecia uma força maior, vinda não sei de onde, me fazia espaná-lo e eu seguia em frente, sem sequer olhar para trás e sem me sentir na obrigação de agradecer a quem quer que fosse.
Mais adiante, nomeie como adversário a distância e tornei-me um viajante compulsivo. Naveguei por mares e oceanos, cruzei céus, trilhei estradas e caminhos inimagináveis, rompi limites e fronteiras. Sem perceber, perambulei por lugares distantes como Kathmandu, Islamabad e Cabul, vivendo como um falso nômade, às vezes com nome e pátria, outras sem, desdenhando, conforme minha conveniência, da fé, ou da falta dela, das pessoas que surgiam pelo meu caminho, sempre tentando fazer uso de identidades e valores que não me pertenciam, mas que eram úteis aos meus objetivos, e era só isso que importava.
Carregado de embófia, resolvi questionar a fé, a pouca que imaginava ter e que muito me incomodava por não saber a sua real serventia, e a dos outros, muitas vezes seus maiores tesouros. Por mais detalhados e fervorosos que fossem os depoimentos dos que juravam ter atingido o benefício maior proveniente dela, o milagre, eu desdenhava e tentava desqualificá-los. Como prova da minha superioridade, profanei templos sagrados, criei deuses à minha semelhança e os nominei de forma a hierarquizá-los, subordinando-os a mim. Sabendo que o castigo a que fazia jus se sujeitava à imprecisão do tempo, sobrevivi.
Dor, distância, tempo e fé aparentemente subjugados, disperso, meu coração, repleto de outras tantas experiências menos a de amar, pausava adormecido quando foi frontalmente alvejado pela lança insana da paixão, desferida por uma criatura de aparência simples, cativa de uma beleza subterrânea, mas com olhos de um azul safírico que brilhavam tão intensamente que pareciam capazes de iluminar sozinhos toda a imensidão de um céu em trevas.
Acostumado a grandes desafios, imediatamente planejei usar as minhas andanças ao redor do mundo para impressioná-la, afinal quem não desejaria estar com quem já havia desafiado os rigores da natureza, questionado os feitos da fé e até criado deuses?
No entanto, para minha primeira e derradeira frustração, nenhuma das minhas conquistas despertou interesse daquela que me ferira mortalmente com o veneno da paixão. Aquilo me deixou profundamente atordoado e eu não conseguia mais ordenar meus pensamentos. O que aparentemente era o mais simples e inofensivo dos meus desafios foi exatamente o único que conseguiu abater-me, sem sequer tocar-me. Eu não entendia como alguém poderia não se curvar diante de alguém como eu, com tantos méritos, com tantos atributos.
Sem saber como preencher o imenso vazio que se instalara em meu coração e produzia ecos que ressoavam em minha cabeça fazendo-me padecer de angustia e depressão, não suportei conviver com a rejeição e decidi dar cabo do que restava de minha vida, acreditando com isso fazer morrer dentro de mim a paixão não correspondida e a decepção causada por isso.
Hoje, subordinado às leis do tempo, aguardo o momento de cessarem as guerras travadas pelos deuses que criei, e que se revelaram verdadeiros demônios, armados e alimentados pela minha falta de fé, para que meu corpo possa ser aceito pelo solo onde serei sepultado, e que o meu espírito quando libertado possa ocupar um corpo que respeite o ordenamento harmonioso existente entre criaturas e O Criador, reconhecendo, sobretudo, a singularidade deste ultimo como o único capaz de nos guiar nos sinuosos e movediços caminhos do amor e da vida.
Augusto Serra