INABALÁVEL AMOR ANIMAL

Biscoito acordou logo ao ouvir o primeiro galo cantar alto em algum lugar da cidade. Na verdade não dormiu bem, mas isso vinha acontecendo desde que seu tutor amanheceu morto dias antes e seu corpo foi levado por desconhecidos para ser sepultado como indigente numa vala comum do cemitério. Atordoado, ganindo em agonia por ver seu pobre amigo maltrapilho sem vida carregado de qualquer jeito juntamente com suas tralhas e pertences sem valor, correu atrás do veículo que o conduziu até o Instituto Médico Legal onde permaneceu chorando à porta enquanto faziam a autópsia do indigitado. Sob a laje onde passavam a noite o vazio, pairando em derredor apenas o odor já comum aos dois e às bugigangas sujas e bolorentas.

Apressou-se em correr, precisava evitar o trânsito louco e desenfreado do cotidiano a fim de chegar ao seu destino sem atropelos. Seu estômago estava vazio, não se alimentava direito desde a triste partida do seu tutor, porém não tinha nenhuma vontade de comer, o sentido da vida desaparecera. Aqui e ali, numa poça d'água do caminho percorrido, bebia um pouco ainda que sem ânimo, a única coisa bem recebida por seu organismo. Depois seguia em frente dobrando esquinas, saltando obstáculos, desviando de ambulantes indo para o trabalho, atento ao objetivo de sua pressa. Pessoas caminhando falavam carinhosas dirigindo-se a ele no desejo de afaga-lo mas não ganhavam qualquer atenção porque o foco de Biscoito era inabalável. A pessoa querida o esperava na cova rasa.

O cemitério já se encontrava aberto naquela hora apesar de ainda vazio, exceto pelo coveiro atarefado em cavar mais uma cova. A morte nunca descansa. Biscoito entrou silenciosamente e foi no rumo do local de sua desdita, sentindo imediatamente o cheiro do amado adiante sob o peso da terra. Lá, dominado por toneladas de tristeza, saudade e abandono, debruçou-se sobre a última morada do único amor que teve na vida. Ganindo em desespero. À noite dormia sob a laje sozinho onde a presença querida se fazia perene, durante o dia abraçava o barro seco abaixo do qual o inesquecível dormia eternidade afora.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 24/04/2024
Reeditado em 24/04/2024
Código do texto: T8048671
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