Obstáculo Inerente do Amor
— É, agora vejo porque ele chamou tanto tua atenção. — minha amiga observa, enquanto a criaturinha por quem tenho uma queda terrível passa do outro lado da rua a caminho de uma biblioteca próxima. Finjo não perceber o olhar intenso dela e pigarreio:
— É. Ele com certeza é muito bonito, mas não foi isso. — pego meu café e tomo um gole. Ela me encara do outro lado da mesa. — É sério. Eu não dava absolutamente nada por ele no início. — devolvo a xícara pra mesa. O cheiro de café e biscoitos daquele local era envolvente, quase como estar em casa - seja lá o que isso realmente signifique. Volto os olhos para o outro lado da rua novamente. Ele está brincando com uma senhora enquanto a ajuda a pegar duas sacolas que ela havia derrubado no chão. Me pergunto se ele sabe de todas as vezes que observei momentos semelhantes a esse, mesmo quando ele me afirmava que era inconveniente ou desfavorável várias e várias vezes. Solto um pequeno sorriso.
— É como um livro. A maioria das pessoas julgam um pela capa ou pelo pequeno resumo que há atrás, mas nunca vão saber realmente a verdade até lerem. Com as pessoas não é muito diferente. Com ele não foi diferente. — tomo outro gole. — Claro que não acompanhei muita coisa e sinto que talvez isso nunca venha acontecer. — ele olha pra trás, na direção da cafeteria, eu viro rapidamente e finjo que estou muito interessada em um jarro de planta. Minha amiga parece não perceber, então continuo:
— Mas li uma certa quantidade de páginas. Algumas em branco, outras bem preenchidas. Algumas com pouquíssimas informações, como se tivessem segredos embutidos na folha. Outras com pequenas ilustrações... todos parte de um quebra cabeça.
— "Livros" assim são complicados, ainda prefiro um bom clichê. — ela comenta, cruzando os braços apoiados em cima da mesa. Entendo o que ela quis dizer.
Dou uma olhada de novo lá fora e vejo ele sumir na esquina.
— Livros clichês são comuns. Não que eu não goste do que é "comum", porém o incomum chama mais minha atenção. A história não é a mesma, o conteúdo é diferente. — ela bufa, ajeitando-se novamente na cadeira e dando uma mordida no seu croissant.
Eu começo a observar as pessoas a minha volta na cafeteria. Um jovem de mão dada com sua namorada perguntando o que ela vai pedir; um senhor de cabelos bem brancos sujando o nariz da netinha de chocolate enquanto a avó bate na mão dele atrapalhando a diversão; e um casal, a moça perto da janela e o menino perto da porta estão a meia hora trocando olhares, mas sem iniciativa.
— Lá está ele de novo. — minha amiga indica com o queixo para fora da janela, me despertando de meus devaneios.
Vejo ele voltando pela mesma calçada que ajudara a senhora minutos atrás. Está com o olhar perdido e já sei o porquê - música. O cabelo cobre os ouvidos, mas provavelmente está de fone. Carrega um livro consigo com o título tampado, mas consigo ver o nome do autor: Machado de Assis. Abro um sorriso.
— Eu nunca conseguir ler um livro dos clássicos da literatura brasileira. Acho extremamente difícil de acompanhar, eu voltava o mesmo parágrafo várias e várias vezes e não entendia. — comento, ainda olhando pela janela. Ele para e cumprimenta um conhecido.
— Vai ver ele é como um desses livros clássicos. — ela sorri pra mim, antes de chamar a garçonete novamente para fazer outro pedido.
— É... — então ele vira de novo.
Nossos olhos se encontram e eu congelo. Quero me esconder debaixo da mesa, mas me seguro no mesmo lugar antes de qualquer idiotice. Ele acena com a cabeça e eu aceno em resposta, então ele volta a atenção pro conhecido.
Será que ele percebeu que fazia muito tempo que eu estava aqui, quase escondida, observando-o? Desejo, do fundo do coração, que não.
Passa-se um tempo e eu volto pro meu livro favorito, que havia começado a ler antes do assunto todo. Juntando os Pedaços - sendo lido pela terceira vez.
"É fácil dar às pessoas o que elas querem. O que é esperado. O problema é que perdemos de vista onde nós começamos e onde nosso falso eu, o que tenta ser tudo para todo mundo, termina."
Estava terminando o trecho quando sinto um perfume familiar. Ele entrou na cafeteria.
Minha amiga me cutuca quando ele passa por nossa mesa se encaminhando ao balcão.
— Por que você não vai lá falar com ele? Acho que ele não viu você.
— Não. Ele sabe que tô aqui. — volto os olhos pro livro. Minha amiga franze o cenho sem entender, mas ela não precisa, contando que eu mesma entenda.
— Ele sabe que você vem pra cá quase todo dia? — ela pergunta.
Não respondo, pretendo manter minha invisibilidade até segunda ordem. Deu certo, ele passou de novo, em direção a saida com um copo na mão.
Suspiro, mas não de alívio. Porém já me acostumei com esse tipo de aperto no peito, acontece com mais frequência do que gostaria.
Antes de tomar meu último gole, reparo no casal afastado de mais cedo.
Então pego uma caneta da bolsa e escrevo em dois guardanapos. Quando me levanto, caminho até o balcão e deixo cair um na mesa da jovem perto da janela e o outro no moço perto da porta.
Quando estou pagando a conta, vejo que ela percebe primeiro, abre o papel e começa a ler. "Gostei de você", foi o que escrevi em ambos. No minuto seguinte, o rapaz também pega e abre. Ele sorri nervoso e olha para a menina, que sorri de volta.
Saio da cafeteria central da cidade com minha amiga, a tempo de ver ele se levantando e sentando com ela na mesma mesa.
Às vezes, é mais fácil lidar com as inseguranças dos outros, do que com nossas próprias inseguranças.