Últimas Palavras
Estava silente a contemplar a janela naquela manhã chuvosa de domingo. Ele bebericava um café frio e aquoso. Tal como sua vida estava a lhe demonstrar havia já algum tempo. Folhas de papel rasuradas; outras rasgadas; outras amassadas. Alguns livros espalhados pela mesa de centro e ele ali, parado como se fosse o ponteiro de um relógio que não funciona mais, a vagar em pensamentos autodestrutivos. Sabia que aquilo não era ele. De repente, ouviu alguns passos.
- O que está fazendo, Arnaldo? – perguntou a esposa.
- Tentando escrever – replicou ele, num átimo, a sentir uma tristeza profunda da qual não sabia de onde se originava.
Helena acercou-se dele e sentou-se ao seu lado no sofá. Por um instante, ela não quis dizer-lhe nada. Sabia o quanto o ato de não escrever deixava o companheiro de vinte anos muito triste.
- Eu me sinto como se estivesse num limbo existencial – comentou ele, a se levantar de repente. Observava as gotas de chuva no vidro da janela da sala de estar. – A impressão que dá é que estou morrendo. Será que é isso, Helena? Estou morrendo?
- Querido... – começou ela, a não saber bem o que dizer. – Creio que esse é o dilema de todo escritor: há um momento de escrita abundante e, súbito, um momento de ociosidade.
- Mas isso a mim é como se algo em meu peito quisesse explodir, Helena – exclamou Arnaldo. – Eu sou as palavras que saem de mim. Eu sou o que eu escrevo. A ficção é a realidade mais pura na vida de um escritor. É onde o escritor encontra-se com a verdade e olha-a nos olhos.
Helena quis contestá-lo. Às vezes se lhe parecia que o marido valorizava mais as histórias criadas por sua mente que as vividas consigo. Porém, sempre entendeu tais questionamentos – sentia-se como Zelda, Anais, Simone... Tentava até inspirá-lo a escrever, a fazê-lo ler outros autores, ver outras perspectivas, mas Arnaldo não conseguia.
- Me comparo muito ao passado – continuou ele. – Outrora, e você bem sabe, eu escrevia de forma orgânica, a parecer que as palavras se me esvaíam como a água de uma geleira prestes a derreter; hoje, eu não sei mais o que sou.
- Nosso diálogo não te inspira?
- Eu não estou aqui para Bergman...
Helena riu, embora Arnaldo não tivesse querido demonstrar jocosidade.
- Cenas de um casamento – soltou ela.
Arnaldo dirigiu-se até a estante da sala e começou a fuçar em alguma coisa. Havia alguns DVDs antigos que ambos guardavam empoeirados.
- Casablanca? – inquiriu Helena.
- Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – replicou ele. – É o que melhor me vem à cabeça neste momento.
- Woody Allen a estas horas?
- Você se lembra de como nossas brigas eram resolvidas? – perguntou. – Sempre com uma dose de Woody Allen ou algum trecho de um livro de Balzac.
- Nós pertencemos à comédia humana, Arnaldo.
Ele sorriu. Colocou o filme, pausou-o, buscou duas taças e abriu uma garrafa de vinho. Durante o filme, tomava algumas notas sobre o que iria escrever. Ao final, Helena disse-lhe:
- Vou dar uma volta... vou ao mercado.
Arnaldo sabia que Helena queria deixá-lo sozinho. Assim, as ideias se lhe apareciam melhor.
Horas mais tarde, ela volveu – a anunciar o seu retorno.
Nenhum sinal de Arnaldo.
Percebeu vários papéis escritos sobre a mesa de centro. Ela colocou as compras sobre o sofá, debruçou-se sobre os papéis e pôs-se a ler. Era um conto; porém, parecia mais uma prosa em prol da despedida.
Súbito, um calafrio deixou-a alerta.
- Arnaldo? – perguntou. Nenhuma resposta. Repetiu o nome do marido mais duas vezes em tons cada vez mais altos.
Levantou-se do sofá e dirigiu-se ao quarto. Arnaldo estava deitado. Pálido. Sua expressão, porém, era terna. Helena acercou-se e pôs a mão direita sobre as mãos entrecruzadas do marido. Estavam gélidas.
Arnaldo despedira-se com um filme de Woody Allen e um conto. Causas naturais. À Helena restou-lhe suas últimas palavras e a sua última prova de amor.