TINHAS DE SER TU...
Ricardo e Laura olhavam as luzes ao longe, do outro lado da linha de costa. Eram os bungalows do resort próximo da casa do Dr. Júlio Miranda, o pai dela, e que vivia sozinho com a filha.
Ambos os jovens tinham crescido juntos, frequentado as mesmas escolas até que o ensino superior os separou. Nessa altura e paradoxalmente, também os pais de Ricardo se separaram e ele ficou a viver com a avó.
Laura, muito organizada, tinha definido um plano de vida, pretendendo constituir família logo que conseguisse um emprego com futuro. Ambiciosa, o atual não a satisfazia. Após concluir o curso, ficara como estagiária num modesto escritório de advogados mas ela sonhava com um escritório de uma conceituada firma de juristas, no que era apoiada pelo pai, viúvo há muito tempo.
O Dr. Júlio incentivara a filha a aceitar o pedido de namoro do Dr. Casimiro, um jovem que se tornara seu sócio, partilhando o consultório de estomatologia.
Ela acabou por aceitar, mas foi constatando que o namorado vivia para o seu ego, era muito vaidoso dos seus títulos e do dinheiro que ganhava. Laura sentia-se um simples adorno.
Ricardo, pelo contrário, sempre gostara de viajar e usou o dinheiro que os pais lhe deram, após a separação, para andar pela Europa, visitando as principais cidades, tanto nos países do norte como a sul. Adorava escrever sobre viagens e passou quatro anos como globetrotter, de país em país. Poucos dos seus conterrâneos souberam das suas andanças.
Laura também deixou de ter contato com ele e só recentemente o vira de novo. Ricardo fora a casa dela e após conversarem um pouco, a antiga antipatia que nutria pelo vizinho veio de novo ao de cima. Sempre o considerara irresponsável, o contrário daquilo que idealizava para o homem dos seus sonhos e além disso não suportava as constantes ironias dele.
No entanto e apesar de tudo, nesse final de tarde aquiescera ao seu convite para comer um pouco do bolo de aniversário da avó, pois o seu namorado, o Dr. Casimiro, andava sempre em simpósios, dando palestras e ganhando muito dinheiro. Esse era o seu objetivo prioritário, raramente a acompanhava.
Sozinha, acabou por aceitar, não por Ricardo mas pela aniversariante, D. Eva, uma velhinha de trato meigo e que ela adorava.
Como estava uma tarde quente, alguns dos convidados ficaram a comer e a beber no alpendre e os dois jovens foram para perto da margem da lagoa, também comendo um pouco de bolo e bebendo limonada.
Sentados sobre uma pedra retangular que tantas vezes servira de banco, Laura por vezes olhava de soslaio para o vizinho. Parecia-lhe algo diferente, talvez mais maduro.
Ricardo então comentou:
- Sei que namoras há algum tempo. Tens planos para casar?
- Um dia acontecerá…
- Queres ter filhos?
- Não para já, só quando tiver a vida totalmente organizada. E tu, o que pensas fazer?
- De momento escrevo para uma revista de viagens e quero integrar a equipa de redatores da American Express...
- Muito bem, é um objetivo. E de amores, como vais? Tens alguma paixão?
Ricardo fez uma pausa e por fim disse:
- Tive um dia, uma muito forte, daquelas que quase nos derrubam…
- O que aconteceu?
- Não aconteceu, tínhamos objetivos distintos…
- Que pena!…
Ricardo olhou-a, notou o sarcasmo e a penumbra não permitiu a Laura perceber a amargura nos olhos dele.
Estava a refrescar, por isso entraram em casa, indo para a sala onde alguns convivas viam um filme romântico. Laura sentou-se num sofá e Ricardo perguntou-lhe:
- Posso?
- Sim, claro. Gostas de filmes destes? Julguei que só apreciavas filmes violentos...
Ele não respondeu.
Depois do filme acabar, ficaram sozinhos e como Laura continuasse sentada, ele colocou no leitor de CD’s uma colectânea de música que tinha organizado para ouvir enquanto viajasse. Logo na primeira música ela ficou surpreendida, era de dança, um slow de que ela gostava muito.
Ricardo levantou-se e perante ela, estendeu-lhe a mão:
- A menina dança?
Laura não estava à espera, ficou surpreendida. Corou muito, depois disfarçou, sorrindo levemente, aceitando a mão que ele lhe estendia. Colocou uma mão no ombro masculino, a outra segurando a de Ricardo. Começaram a dançar, ficando próximos. Aos poucos sentiu-se embalada pela música e encostou a cabeça ao ombro dele. Sentiu-se lânguida, os joelhos acabaram por fraquejar e ele segurou-a nos braços.
- Desculpa.
Retirou-se logo de seguida, envergonhada, confusa com o que sentira. O namorado não gostava de dançar, tão pouco gostava de filmes românticos, achava-os uma palermice.
Todo aquele ambiente tinha-a perturbado. A proximidade de Ricardo também a perturbara e muito...
No dia seguinte Laura voltou a casa dele, pois esquecera um casaco de malha que na altura levara pelos ombros. A porta da rua estava semiaberta e ela entrou. Ninguém na sala nem na cozinha, apenas silêncio. Viu a porta do porão entreaberta e espreitou para baixo.
Ricardo estava de pé, pensativo, em frente a uma grande caixa de cartão.
Ela desceu sem ruído e colocou-se ao lado dele.
- Olá, tudo bem?
Como ele não respondesse, ela continuou:
- Recordações de viagem?
-Sim.
Laura pegou, distraída, em vários papéis, agendas, depois num roteiro de viagens focando Paris.
- Tu disseste-me um dia que gostavas de lá ir.
- Sim, foi há muito tempo.
Ela folheou o livro e um pequeno pedaço de papel caiu no chão.
Era uma lista de locais de Paris a visitar, escrita pela mão dela.
- Como é que isto te foi parar à mão? Como está aqui?
- Deixaste-a cair e eu guardei. Tínhamos treze anos…
- Há tanto tempo… Porque guardaste este papel tão insignificante?
- Para mim nunca foi insignificante… Juntamente com outros que guardei de ti, são recordações que nunca esquecerei…
Ela olhou-o de forma mais intensa.
- Porquê?
- Queres mesmo saber? Pois bem, vou-me arrepender mas aí vai… - respirou fundo e continuou:
- Sempre gostei muito de ti, aliás, sempre te amei, amo-te e nunca deixarei de te amar… Tu és a tal paixão que não venceu… mas mesmo assim estás sempre aqui, do lado esquerdo do meu peito.
Laura quedou-se a olhá-lo, depois seu semblante adquiriu uma expressão terna. Então acariciou-lhe a face e sentiu o embaraço dele.
- Meu pobre querido. Nunca imaginei…
Chegou-se mais a ele, deitou-lhe as mãos ao pescoço e beijou-lhe os lábios.
Ficaram assim abraçados até que Ricardo lhe perguntou:
- E agora, como ficamos?
Ela sorriu, tocada pela confissão dele.
- Acho que mereces uma chance, sim. Amanhã vou falar com o Casimiro, afinal nem gosto assim tanto dele. Foi um erro mas ainda estou a tempo. E tu… talvez sempre tenha gostado de ti e esse sentimento, muito forte, só agora tomou conta de mim…
Subiram ao piso de cima e lado a lado, caminharam de mão dada até uma pequena sala nas traseiras onde viram a avó dele sentada, a fazer malha.
Laura envolveu D. Eva carinhosamente pelos ombros e perguntou-lhe:
- Gostava de me ter como sua neta?
A idosa senhora olhou o neto e adivinhou tudo. Sorriu e disse:
- Têm a minha benção.