Renasci e me vi amor
Há dias que não se repetem, elencados por noites vibrantes, cheias de risos, de produções em que vivi feliz. Hoje apenas rasgo papéis. Conto no silêncio um número enorme de espetáculos que protagonizei. Estou sexagenária e sinto mais, o tempo catalisou palcos viçosos e os congelou. Estive sempre preocupada com a perfeição das coisas. Talvez isso torne a vida mais difícil. Enquanto escrevo, folhas de papel flutuam neste ambiente frio. Tantos trabalhos escritos cuidadosamente para serem dançados, friccionam, escorregam e vão sendo esvaziados pela falta de desejo de continuar. Sinto ainda o tablado em meu corpo, este corpo agora morno, que pede assento e não rodopios. Os joelhos doem, a pele flácida não sustenta sequer as nádegas gordurosas, que dirá as pontas dos dedos dos pés.
— Madalena, mulher, ouça-me!
Adelaide é amiga demais para perceber que acabei com as torturas do perfeccionismo. Será que eu devia ser aquilo que ela e os outros esperavam de mim?
— Mulher, você é muito mais do que apresenta agora. Por que teima em se colocar no fundo, de um baú como quinquilharia?
Adelaide não entende que eu me sinto só. Ela ainda me vê riscando o tablado. Pensa que sou a melhor naquilo que faço. Não pretendo lhe mostrar que a felicidade não está logo ali, virando a esquina. Fui feliz o suficiente. Este corpo velho não corre, não salta, não dá conta do molejo de ontem. Esta magreza mórbida desconhece o quanto é preciso ser forte para pulsar e fazer tremer os músculos dentro dum collant. Não me cabe essa vestimenta, digo-lhe toda vez em que nos encontramos.
— Madalena, não percebe que anda dormindo demais?
Não posso revelar que passo as noites arrastando pensamentos dos trilhos do metrô suburbano até o teatro municipal. Que os meus olhos, ao se derramarem, perturbam-se com as manhãs das segundas-feiras, pelos quais, exausta e plenamente feliz, eu tomava de volta à casa. Eu sei que a felicidade se perdeu, mas Adelaide custa a acreditar que, tudo bem, não anseio por ela, não por aquela felicidade do passado.
Hoje, ao terminar um demorado banho matinal, me vi enfraquecida, minha pele do rosto no espelho, parecia derreter. Como pude esquecer quem eu fui? Pareço outra. Estive indiferente às mudanças. Coloquei de lado o quanto gostei de mim.
Me afastei do espelho. De cabeça baixa, me envergonhei. Aquele descaso precisava de um fim, porque, quando a dor chegou e minhas mãos ainda podiam tocar flores vibrantes, não tive coragem para continuar, desisti da dança; mas continua em mim o vento do pulsar que meu coração faz. Agora ao tomar a bicicleta, ao descer a rua acompanhando a revoada, me senti liberta. Parece não haver joelhos ou dedos doloridos, meu corpo é puro amor por mim, renasci e me vi amor.