Talismã
Sábado, cinco da manhã, desperta. Silenciosamente faz o sinal da cruz, beija a medalhinha de São Cristóvão, calça suas pantufas velhas —presente de um aniversário longínquo—, levanta-se da cama e caminha em direção do banheiro. Em frente ao espelho, depara-se com um homem pálido e envelhecido com bolsas formando-se por debaixo dos olhos. Bigode desgrenhado que teima em ficar grisalho. O cabelo não é mais problema: começou a cair com a maioridade, é calvo desde os trinta, nenhum fio sequer. Herança deixada por seu pai.
Retira o pijama de flanela e, com toda coragem, permite que a água escoe por seu corpo esguio, coberto de pelos. O cheiro do Phebo domina todo o ar. Volta ao espelho enrolado na toalha e com a navalha se barbeia definindo novamente o bigode que cultiva com o mesmo cuidado desde que ele deu de surgir em sua face: uma linha fina de pelos perfeitamente alinhados e aparados entre o nariz e a boca.
O traje esporte fino especial para os fins de semana já está estirado por cima da poltrona desde a noite anterior. PREMEDITADO. A bermuda xadrez, a camisa polo, o cinto de fivela dourada. Hoje é dia. Todos os sábados o ritual se repete RELIGIOSAMENTE.
As pantufas deram lugar ao Ryder de borracha azul.
Põe água na chaleira e vai cuidar do trinca-ferro: limpa a gaiola, troca a água, assopra o alpiste. O tempo certo até a água ferver. Passa o café. A todos diz que gosta dele amargo, sozinho, capricha três colheres bem cheias.
Atravessa duas quadras sem cumprimentar ninguém, acredita-se disfarçado embaixo de um boné do Flamengo, atrás de um Ray-Ban. No bar é esperado. Encosta-se no balcão, não precisa pedir, o dono do bar já está trazendo sua Kaiser, sua tulipa. No rádio, a Talismã o espera, começa a tocar.
“Sabe, quanto tempo não te vejo
Cada vez você distante
Mais eu gosto de você
Por quê?
Sabe, eu pensei que fosse fácil
Esquecer seu jeito frágil
De se dar sem receber
Só você...”
...e ele chora.