Registros de dor
Ele fora vendido. Vendido por oitocentos mil reis... Era tudo que ela conseguiu saber.
Não teve a oportunidade de interpelar o pai, como era do seu temperamento. Desde novinha ela lutava contra as regras impostas em casa, mas destemida corria o risco embora soubesse do que ele seria capaz.
De sua cela ela tinha somente a luz do luar... O silêncio era torturante e sinalizava as agruras de ter cedido àquele amor.
Seus olhos ainda guardavam a imagem de Mathias, seu corpo negro e musculoso, sorriso tão cândido quanto branco... E o toque cuidadoso de suas mãos tão rudes. Estremeceu em imaginar o que ele sofrera depois daquele dia.
Era ele quem carregava as tralhas da sinhá. Mas agora, carregaria para sempre as marcas das chibatas e a tristeza do degredo. Ela também carregaria, para sempre, as marcas daquele amor em seu coração que sangrava de remorso e de profunda incompreensão.
A menina era a filha mais nova do coronel do lugar, homem carrancudo e de poucas palavras. Ao saber da fuga da caçula com seu escravo, bradou a seu capataz e ao capitão do mato, que caçassem os dois. Ordenou que levassem imediatamente a menina ao convento que havia nas proximidades, sem direito à sequer despedidas e o rapaz, que recebesse duzentas e cinquenta chibatadas no Pelourinho para servir de exemplo, depois salgassem as feridas e, tão logo o escravo se recuperasse, fosse vendido no mercado com o preço que ofertassem, dando plena e rasa quitação ao novo dono, em livro de registro, como era praxe da época.
Assim foi feito.
Daquele dia em diante, para a tristeza de D. Bibiana, Emiliana seria para sempre esquecida naquela casa. Além do vazio de ter perdido uma das filhas, assistia amargurada a decadência do esposo relutante, cada dia mais entregue ao vício do álcool, seu pior algoz e também seu refúgio para dar conta da decisão irremediável que tomara.
Cláudia Machado