Casa branca
Casa branca
Era muito simples para ser tão bonita.
Numa rua modesta foram plantados seus primeiros sonhos. Totalmente branca com desenhos feitos com as pontas dos dedos, cravando ali, as digitais. Muro baixo e um jardim com plantas em pares tingiam o branco daquele lugar de verde e multicores de lindas flores. Duas palmeiras gêmeas plantadas lado a lado como se fossem as guardiãs daquela nobreza singular. Esta paisagem me intrigava muito.
Todas as manhãs via o sol batendo na janela daquela casa ao invadir o jardim. Mas ela estava sempre fechada e a porta também. Dava para perceber o cuidado que tinham com aquele local. Sentia alegria ao passar por ali e ver aquela casa que parecia exalar cheiro de felicidade. E sempre me perguntava, quem poderia ali morar? Jamais saberia a resposta, embora passasse naquele local quase todos os dias E era impossível tentar descobrir, não seria de bom tom para uma pessoa, perguntar simplesmente por curiosidade quem ali morava. E assim foi por algum tempo, mas com o passar dos anos fui aos poucos deixando de passar naquela rua e, consequentemente me esquecendo daquela casa. A vida seguia sem pressa, depois de alguns anos voltei a passar naquela rua e fazia isso com certa frequência novamente. E como era de se esperar voltei a prestar atenção naquela casa. Tudo estava igual, a mesma cor, o mesmo jardim e as mesmas plantas. Suas janelas e portas continuavam fechadas. Tudo estaria dentro do normal se tudo aquilo não continuasse a me intrigar. As mesmas perguntas e a mesma sensação de que ela exalava um perfume jamais sentido ou explicado. Mas, fui percebendo que as plantas pareciam tristes e suas cores já não se fundiam. O sol adentrava com certa dificuldade, pois suas folhagens se tornaram densas e algumas ramagens entrelaçavam umas às outras tornando difícil a entrada do sol. As ramas de uma jiboia imensa que crescia e subia nas palmeiras, cravando suas raízes nos troncos delas mostrava que a natureza tomava conta do jardim e que a harmonia que antes existia, agora brigava com ela mesma. Dava para perceber que a casa continuava branca e linda, mesmo dentro daquela simplicidade que sempre demonstrava uma singeleza sem igual. Deu para perceber que algo acontecera, mas, como saber? Era um mundo plantado numa rua.
E assim, foi passando o tempo e quase me acostumei com aquela paisagem que antes exibia elegância e agora se mostrava tão solitária.
Certo dia eu estava na fila de um banco da cidade enquanto esperava ser atendida pela gerência, quando passou por mim uma senhora que tropeçou em suas próprias pernas e quase caiu. No ímpeto decidi ampará-la e com sucesso impedi que caísse. Ajudei a senhora a se sentar em uma cadeira e depois peguei a senha para idosos e a entreguei. Foi inevitável prolongar a conversa, pois a senhora não parava de falar. Disse que sempre morou na cidade e que conhecia quase todas as famílias que moravam naquele bairro. E eu a ouvia com atenção, até que resolvi perguntar.
-Então a senhora deve saber quem mora naquela casa branca que fica ao lado da Igreja Central! Estou certa?
E ela respondeu:
-Sim, conheço bem aquele lugar. Cheguei ali menina ainda.
E eu disse:
-Sempre tive curiosidade de saber quem mora naquela casa, talvez pela realeza oculta por trás daquelas portas, e hoje que estou diante da senhora, sou grata por conhecê-la. E ela respondeu:
-Ali moravam o Doutor Ruy e Dona Vera. Eu vim de Minas para trabalhar com eles assim que Dona Vera engravidou do Pedrinho, o primeiro filho deles. Pedrinho era muito fraquinho e doente. Faleceu por causa de uma pneumonia após três meses de nascido. Embora Doutor Ruy fosse um excelente médico, não conseguiu salvar a vida do seu próprio filho. Ficaram muito tristes com a perda, mas com o tempo superaram. Depois tiveram mais três filhos que ajudei a criar. Uma menina e dois meninos; Pedro Paulo, André Luís e Marilene. Eles foram muito felizes ali, formaram seus filhos muito bem. Os meninos são médicos iguais ao pai, e Marilene é arquiteta. Dona Vera era professora de piano e trabalhava dando aulas em escolas da cidade. Hoje seus filhos moram nos fora do país. Não quiseram ficar no Brasil depois que Doutor Ruy e Dona Vera faleceram. Pode ter certeza que eles eram muito felizes. Dona Vera faleceu primeiro. Morreu num acidente na via Dutra, e Doutor Ruy faleceu dois anos mais tarde. Ele sentiu muito a falta da Dona Vera e acabou se isolando. Passava a maior parte do tempo olhando para aquelas palmeiras que ficavam na frente da casa. Eles plantaram as palmeiras juntos e elas simbolizavam o casal. Ele dizia que tinha plantado ali, a felicidade. Era lindo ver a convivência deles. Depois que ela se foi, Doutor Ruy ficava dentro daquele quarto olhando aquelas duas palmeiras como se tivesse olhando para eles mesmos, até que um dia foi ao encontro da Dona Vera. Era assim que ele se referia à morte dele. Que seria uma viagem para reencontrá-la. Casei-me naquela casa, pois me tratavam muito bem, fizeram uma linda festa no meu casamento. Meu velho era conhecido deles e fomos felizes também. Pena que aquela casa foi vendida para uma grande empresa, que construirá um grande prédio. Ainda não sei se comercial ou residencial, mas de qualquer forma, espero que a felicidade deles se espalhe por entre as pessoas que ali passarem.
Fiquei perplexa ao saber da venda da casa, mas nada falei. Logo chamaram a senha daquela senhora e ela dirigiu-se ao caixa enquanto eu aguardava a gerencia. Depois de atendida fui até ao local onde ficava a casinha branca na esperança de vê-la mais uma vez, talvez a última. Mas tal foi a minha decepção ao ver que a casa já não mais existia. Havia agora uma construção de grande porte como àquela senhora descrevera, e chorei. Chorei de saudade do doutor Ruy e de dona Vera que muito embora não os conhecesse de verdade, agora sabia de sua história e de alguma forma senti a energia boa que fluía deles, mesmo passando apressada.
Fiquei por um tempo fitando a rua e seus prédios. Notei que outras casas ao redor também foram derrubadas. No lugar da casa da frente abriu um grande banco e ao lado, um prédio de três andares onde funciona uma padaria e uma academia de ginastica. Aquela ruazinha bucólica quase se tornou avenida. Ouvi comentários de transeuntes que farão um shopping na cidade. Com certeza mais casas irão ao chão, mas quem contará suas histórias? Quem poderá dizer se foram tristes ou não?
Lili Ribeiro
20/03/2020
Obs; jiboia é uma planta trepadeira que se enrosca em outras planta e paredes.
Os personagens são ficticios