Livramento

- Eu falei isso muitas vezes, mas ele só ouvia e ria. Nunca acreditou que eu pudesse estar falando sério.

- Mas você já trabalhava fora, nessa época.

- Exatamente neste emprego aqui. Paga pouco, mas, afinal de contas, é meu dinheiro. Nunca precisei pedir um tostão pra ele com alguma coisa que fosse exclusivamente pra mim.

- E ele queria que você deixasse de trabalhar, pra ficar cuidando de filhos e da casa...

- Filhos que, felizmente, nunca chegamos a ter. Sempre fui muito cautelosa com obrigações que se faz para a vida toda; quando ele vinha falar em filhos, eu desconversava. "Como vamos ter filhos, quando ganhamos tão pouco", eu dizia.

- E qual era a resposta?

- Que as coisas iriam se ajeitar, que onde comem dois, comem três, etc.

- Talvez reduzindo a quantidade de comida?

- Acho que ele não seria capaz de entender o sarcasmo, mas talvez concordasse com a sua ideia. Todavia, para dar alguma esperança, eu também falava que, se ele queria mesmo que eu ficasse em casa cuidando de crianças, que arranjasse um emprego que pagasse mais. Mais do que a soma dos nossos dois salários. Pelo menos, quatro ou cinco vezes mais do que isso.

- Isso deve ter calado a boca dele.

- Ele ficava chateado; porque, lá no fundo, sabia que não tinha capacidade para isso.

- Espero que não tenha te chamado de interesseira.

- Se tivesse, eu diria que se fosse, não teria me casado com ele.

- Acho que ele percebeu o rumo que a história iria tomar e mudou de assunto...

- Para algumas coisas, ele era bem esperto.

- E então, cá estamos; você, separada dele, mas ainda com seu emprego que paga pouco.

- É pouco, mas é meu. Minha mãe dependia do meu pai até para comer, passou a vida toda cuidando de casa e crianças. Esse é um futuro que nunca quis para mim.

- E então, um dia você arrumou suas coisas e foi embora.

- Quando ele chegou em casa, à noite, eu já não estava mais lá. Agora, ele está livre para arrumar uma coitada que queira se submeter ao que ele pode oferecer.

- E você?

- Eu estou livre para fazer da minha vida o que eu quiser.

- [28-12-2023]