ISOLDA

Marçal fechou o livro e os olhos, enquanto sua mente iniciou a viagem sob as pálpebras. Imaginou-se sentado ali mesmo diante da janela, com aquele sol insistente em uma tarde qualquer do passado. Isolda estaria no sofá, esticando os músculos — nunca os ossos, como gostava de frisar — após a lida com os afazeres domésticos. Aquela languidez invadindo o coração e propondo uma soneca prazerosa e revigorante. Seu corpo pequeno encolhido em três quartos do móvel, agarrando a almofada como um escudo. Olhos fixos nele, atentos como uma gatinha curiosa apreciando o vai e vem de uma pena, antes de vir brincar.

Empostaria sua voz, declamando com sua melhor versão de radialista das madrugadas, versos dos poemas de amor, entremeando olhares para ela. Suspirou, colhendo o odor fugidio do perfume de lavanda que mantinha a casa aconchegante ao coração. Como em um desenho animado, aquela brisa quase invisível, carregada de lembranças de momentos e sorrisos fáceis. Cada peça de sua casa era abençoada por Isolda. Era a mão que posicionava a persiana da janela na justa medida, para colher a porção exata do vento de fim de tarde, realizando a magia.

Divagou, deixando o sonho de lado e conjeturando a respeito de outros tantos lugares onde sentia o mesmo perfume. Nunca obteve o mesmo prazer olfativo do proporcionado pelas mãos hábeis da esposa. Apenas a cozinha escapava dessa emanação, projetando outras imagens em sua tela mental. Também era território dela, claro. E outros perfumes eram disseminados ali. Suas ervas, seus cozidos e assados. Maravilhou-se ao notar a divisão exata entre a sala de estar e a cozinha, estabelecida de comum acordo entre os odores, sem que um interferisse no outro.

— Isolda, minha maga maravilhosa! — sussurrou enquanto permanecia de olhos cerrados.

Cada ponto da casa deles tinha seu perfume especial. O banheiro era território do perfume dos cabelos molhados, da pele ainda úmida, alva e fresca. No quarto de dormir, o perfume era de rosas. No seu escritório, o de livros, novos ou bem preservados e sempre limpos e arrumados nas estantes. Nem mesmo a sisudez das cortinas escuras — sempre preferira muita luz para suas leituras e a posição das janelas não favorecia isso ali —, impedia que o olfato fosse importunado de alguma maneira. Sempre há um senão em ambientes sérios demais.

Outro suspiro e abandonou o olfato, tentando dar vazão as sensações táteis. Cada objeto trazia uma sutileza embutida, sem alarde. Eram componentes da ação, nunca os atores principais. E com o tato, sua mente ia mais fundo nas lembranças. O mundo desaparecia e só tinha neurônios e sinapses para os abraços, os beijos fugidios ou apaixonados, a simples ciência da presença dela movendo-se por ali. Seu coração descompassava, quando recordava a primeira vez que os olhares se encontraram. Cada pormenor daquela cena havia xilografado em sua alma a paixão avassaladora que sentiram.

Adoravam se abraçar, era bem verdade. Sentir-se seguros um nos braços do outro, até tornarem-se uma só alma. Como por mágica, fingiam sentir o coração bater no peito do outro. Os finos fios do cabelo tocando em seu rosto, ou então a pressão comedida da testa dela ao encontro do pescoço com a barba por fazer. A pressão dos contornos. Sentir a fragilidade exigente do corpo, buscando proteção para todos os medos, os anseios, os sonhos não realizados. Presos entre a certeza que os braços poderiam prover. Os tempos de namoro, com o andar pelas ruas silenciosas, com postes de luz amarela. Mãos dadas. O suor nas palmas. Aquele único beijo de despedida no portão, que ressignificava toda a existência daquele dia.

A delicadeza do vestido de noiva, no dia do casamento. Aquela visão esplendorosa de Isolda como uma verdadeira Deusa encarnada. A felicidade estampada em cada detalhe do rosto maquiado, em cada ponto brilhante do vestido branco, em cada dobra suave do véu e em cada uma das mínimas flores daquela grinalda. A dúvida que assolou seu coração ao vê-la cumprir o ritual dos passos pelo tapete vermelho no corredor da nave da Igreja Matriz, de braço dado com o pai, mas parecendo levitar ao seu encontro. Nada mais existia ao redor, lembrou-se. E esse foi o principal motivo da dúvida:

— Deus! Mereço algo tão puro e angelical como essa mulher?

Era a mulher dos seus sonhos. Amá-la foi como deixar de existir, passou por todos os sete céus e atingiu o paraíso ao vê-la sorrir, tão satisfeita quanto ele. Ambos eram escravos da dúvida. Inexperientes nas artes do amor. Por fim, tudo correu à perfeição. E se repetiu com a mesma intensidade, a mesma volúpia e desespero de saberem-se cientes de seu espaço.

— Mas nunca foi meu espaço ou seu espaço, Isolda: ali, éramos nós! — sussurrou outra vez.

Ajeitou os ombros de leve, no encosto da poltrona e deu atenção ao calor do sol que entrava pela janela. Um sabiá começou a cantar do lado de fora e lembrou-se de Isolda cuidando de experimentar o tempero do jantar, batendo a colher de pau molhada na palma da mão. Sussurrava um “nã-nã-nã”, acompanhando a melodia de A Majestade, o Sabiá, de Roberta Miranda, sua canção favorita. E, como sempre, explodia em um sorriso majestoso na sua direção, feliz por sua criação culinária.

Mais um suspiro e a mão subiu ao canto do olho, colhendo uma lágrima de pura saudade. Olhou o relógio e levantou-se, guardando a carteira no bolso interno do paletó dependurado na parede. Vestiu-o, pôs o chapéu e saiu pela porta. Já na rua, encostou-se no ponto de ônibus por cinco minutos e embarcou no H616, rumo a Clínica Santa Dymphna. Aderbal, o motorista, o saudou:

— Vamos ver Dona Isolda, Seu Marçal?

— Sim, sempre as quintas-feiras, sempre as três da tarde.

— Quem sabe hoje o senhor ganha um sorriso?

Marçal sorriu. Seria mágico! — pensou. Cumpriu o ritual na portaria, meia hora depois e sentou-se diante de sua paixão. Os olhos fixos, perdidos em algum lugar distante, mais uma vez não se mexeram. Estava lá. Mas, não mais Isolda.

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 18/12/2023
Reeditado em 13/02/2024
Código do texto: T7956928
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