A hora íntima.

Estamos sós um de frente pro outro. Nada há para além de silêncio e fome. Não é fome de comer. Sua beleza ainda me estremece de um jeito que eu nem sei, de um jeito que eu nunca vi. Você veste uma roupa cinza com detalheszinhos cor de rosa. Os cabelos estão presos, e eu sinto que posso ficar ali parado tanto quanto der, emudecido. Poderia. Se não fosse estranho. E aqui é um parêntese interessante, nossa memória é ardilosa em alargar ad infinitum os momentos, fazer ser muito mais do que jamais foram.

A mesa à nossa frente está vazia como uma ceia reversa, a fome ainda está lá. A única coisa que sobra é nos servirmos da mútua companhia, é o limite possível de aproximação, mas há ainda um medo latente, uma mudez. Minhas mãos estão suadas e, mesmo o ar-condicionado gelando tudo por inteiro, o calor se pega a mim, vai se assentando, até enfim congelar.

Enquanto você fala, penso em perguntar se não quer pedir algo, mesmo já te conhecendo o mínimo pra saber que a resposta é não, que ali não ia servir nada que te saciasse, e que a minha resposta também seria não. Mas é só pra ter o que falar, pra sentir que a nossa relação não secaria tão precocemente, e ia virar o que sempre esteve fadada a ser, só pra fazer durar e correr evitando o silêncio do início.

Seus olhos são grandes, grandes e lindos. Me dão um pouco de medo. Você mostra alguma coisa no celular e ri. Enquanto isso, eu olho pro seus olhos e penso sobre como os amo, e depois tenho vergonha disso, tenho medo de ser tão óbvio assim no meu rosto. Rosto que, diferente do seu, nada tem de mistério. Fracasso muito em me esconder de mim.

Na tentativa de esquecer dessa vergonha, falo algo que, acho, é minimamente engraçado. Mas quero mesmo é que você continue falando. Não, quero querer o mesmo que você, e ter, de algum jeito, o privilégio de saber o que é antes, que aí me antecipo em te decifrar, em te acolher. Os sabedores de relacionamento, os coaches, podem até me julgar, dizer que não é bem assim, que não funciona desse jeito, mas não importa. Não importa.

Lembro de “Jules e Jim”, em certa altura do filme um dos personagens diz que é um curioso, que aprendeu que ser curioso é a melhor das profissões. Pois, aqui se aplica também, eu acho. O melhor lugar pra estar é ser curioso do outro, antropólogo casual. É estar tão repleto de nós mesmos, que migramos até a "subida mais escarpada e a mercê dos ventos", que pra nós é na verdade, a melhor possível das montanhas, a melhor das subidas, mesmo que cair dali seja sempre uma possibilidade.

As coisas mudam um pouco. Antes, a dinâmica que me constrangia, de falar e uhum, entendi, e rir e ouvi-la, se acomoda em mim um pouco, até envelhecer e deixar de ser novidade. Sinto um pouco de desespero nisso, como se, em segundos, tivesse sentindo a coisa que sentem os que estão há décadas juntos e já não há mais o que ser falado, comentado, reiterado. Só que aqui é ainda pior, pois somos completos estranhos, completos estranhos que não sabem como deixar de ser.

Quase em desafio, faço um comentário ácido, engraçado, pergunto algo pra te tirar do prumo (O que não acontece. O que na verdade, só faz eu amar mais seus olhos, porque eles, porque você responde como uma tenista voraz, de reflexo impecável)

A essa altura, nós dois, na avidez de ignorar a tensão no ar, e a quase nula habilidade social, essa coisa de não saber ser alguém para ninguém além de nós mesmos, vamos catando no ar as piadas, as lembranças de um passado que um não conhece do outro, na ânsia de que, Isso de alguma forma seja compreensível, seja um passado comum a ambos, que nos aproxime o coração sem que a caixa torácica seja uma barreira.

Aos poucos vamos falando sobre os nossos próprios defeitos, segredos, dissolvendo-os na água pra machucar menos (como aquela música do Frejat), mas isso logo se torna um corredor estreito de azulejos brancos limpos, desinteressante, e vamos a coisa seguinte, que é falar dos defeitos dos outros.

Não, não é bem falar dos defeitos dos outros, é mais você lendo os outros de um jeito afiadíssimo, ao vivo, uma cronista in real time. O jogo é o seguinte: olhar pra alguém e imaginar quem aquela pessoa é. A vida inteira dela. Todos os detalheszinhos. Meesmo. Até os que fogem da maioria. Pensando agora é uma estratégia interessante, desviar a sufocante pressão de ser alguma coisa, colocar isso a cargo do terceiro, aquele que não veremos mais depois. É como um crime, um crime necessário, e o fazemos sem remorso.

Por exemplo: ele carrega um embrulho, uma caixa, provavelmente é presente, pelo nome da loja é coisa pra mulher. Casado? Não, ficando. Não tem anel no dedo. O que tem na caixa? Ah, é um sapato, um sapato bem chique, sabe, aqueles de ir pra festa chique, beber bebida chique, e depois voltar com um calo bem chique no pé.

Eu acho a maior graça, acho maravilhoso. Me pergunto se você me leu desse jeito assim que me viu, ou se lê as pessoas todas que conhece. De novo penso como amo seus olhos, mais do que os olhos, amo tudo que ainda não conheço, amo a ideia de saber tão pouco sobre você, só pra depois poder saber mais.

Estamos sós um de frente pro outro. Lembro de novo do silêncio e se tem uma coisa engraçada sobre o silêncio, é que assim que o percebe já não há mais o que fazer. Só que esse agora é um silêncio novo, pegajoso, desidratado. Um que existiu depois de uma fatia generosa de não-silêncio, por isso, dói mais ainda que o primeiro.

Lembro da fome que ainda não passou, você se empoleira um pouco na cadeira, desbloqueia o celular achando as horas, e ensaia um "já vou", que eu consigo sentir chegando, bem antes de chegar. Recebo-o como uma criança que percebe que tem que ir embora da casa do amigo, porque já é tarde. Penso em dizer "fica mais", mas parecemos um pouco esgotados um do outro, como se, por um longo tempo, nada mais precisasse ser dito, e ainda na verdade, TUDO precisasse ser dito.

Sinto que faremos essa hora ser quase infinita, ser como cem anos, de estar num futuro próximo rindo e recobrando cada passagem, ângulo, detalhe. Sou um pouco temerário, sei que essas ocasiões são raras, que sabe quando outra vez estaremos só um pro outro de novo. Na hora íntima.

Você se levanta, rimos do ranger que a cadeira faz, como se o universo nos presenteasse ainda com uma piadinha final, um arremate, e então nos despedimos. Não lembro se me abraçou, ou pegou nas minhas mãos, mas lembro de vê-la tomar distância, se apequenar, até ficar cada vez mais longe e desaparecer. Lembro de pensar que, talvez, a felicidade, se existir, se pareça um pouco com isso.