Ester acordou com a primeira claridade da manhã. Virou-se para abraçar o marido, mas o lugar na cama estava vazio. Estranhou a ausência, pois ele não tinha o hábito de se levantar antes dela. A verdade é que Herman andava taciturno já fazia alguns dias. Era um homem difícil de se abrir às conversas mais delicadas. Conhecia bem o jeitão protetor dele em não querer causar-lhe preocupação. Precisava, portanto, ser mais insistente sobre aquele silêncio forçado.
Espreguiçou-se entre os lençóis macios, sentindo-se plena por estar viva. Levantou-se e se mirou no espelho da parede. Lá estava o rosto bonito, de pele viçosa, no apogeu de seus trinta e cinco anos. Era uma idade boa para aproveitar as coisas do mundo, ideal também para se enaltecer à vida. Foi ao guarda-roupa e escolheu um vestido leve estampado com flores primaveris.
Ao chegar na cozinha, notou o esmero da primeira refeição sobre a mesa: bolo de laranja, pães crocantes, café, torradas, chá, e frutas variadas. Herman sempre foi atencioso às tarefas domésticas que a deixavam feliz. Ocupou a sua cadeira preferida, bem aquela defronte à grande e vistosa janela voltada para a praia.
Enquanto bebericava o delicioso chá de hortelã, ela apreciava, fascinada, o quadro vivo à sua frente. Na distante linha do horizonte, o sol já se deixava entrever pela metade, conferindo à paisagem costeira aquele tom alaranjado já tão conhecido, mas sempre deslumbrante de um novo nascer do dia.
— Muito bem – disse em voz alta, depois de terminar de comer. Em seguida, alisou o vestido e saiu descalça à rua. - Vamos ver o que se passa na cabeça deste homem.
Ao caminhar pela orla da praia na direção do marido, sentiu uma exultação de sensações vindas da natureza. Experimentou a brisa suave no rosto, provocando o toque delicado das dobras do vestido de encontro a pele. O contato aveludado entre os dedos dos pés na areia. O ar fresco da maresia. O barulhar leve das ondinhas do mar tranquilo. E, finalmente, vivenciou a temperatura cálida do sol se elevando no horizonte. “Ahhh, isto, sim, é uma boa razão para viver”, pensou.
Herman estava sentando na areia mais dura da praia, onde o mar vinha lamber os seus pés. Era um homem bonito, cinco anos mais velho do que ela. A camisa azul de algodão e a bermuda branca o deixavam mais bonito ainda. Ela se aproximou e sentou ao seu lado. Inclinou-se à direita, pousando o rosto no ombro dele. Respirou fundo e disse:
— Querido, estou pronta.
— Pronta? Pronta para o quê?
— Pronta para ouvir as más notícias. Te conheço há muito tempo. O que é que está acontecendo?
Ele não se voltou para encará-la. Ao invés disso, pegou um graveto velho trazido pela água e começou a rabiscar círculos na areia molhada. Apertou e entreabriu os lábios, de nervoso. Ficou pensativo. Depois suspirou profundamente, como se quisesse tomar coragem.
— Ester, você acha que demos uma boa formação para o Henry?
Ela levantou a cabeça do ombro do marido, alerta.
— Por que você está me perguntado isso?
— Ele esteve aqui na semana passada pra dizer que vai se casar novamente.
— Mas como? Se mal faz um ano que a Hellen morreu!
— Pois é.
— Não acho muito certo isso, não. Ele deveria esperar um pouco mais
— Eu também penso assim, querida.
— Por outro lado, ele ainda é novo. Precisa recomeçar. O nosso Henry, você sabe, sempre foi muito impaciente.
— E um pouco egoísta também – ele completou em tom pesaroso.
— Ei, espere aí, você está preocupado porque nosso filho vai se casar de novo sem esperar o luto adequado de um ano?
— Não. Não é isso. A Marise... hum, a mulher com quem Henry vai se casar é... como posso dizer... ela tem um padrão de vida alto, entende? Toda a família é rica. Está acostumada com o bom e do melhor.
Aquela informação, a princípio, nada disse a Ester. “E daí?”. No entanto, aos poucos, ela foi analisando a conversa em retrospecto. Seu marido, quando queria lhe dizer algo desagradável, tinha o hábito de ficar dando voltas. O filho era “um pouco egoísta também”. Sim, foi isso que ele dissera. De repente, a verdade lhe atingiu como uma bofetada na cara.
Ela se levantou muito assustada.
— Ahhh, não. Não pode ser! O meu Henry não faria isso!
Herman se levantou também. Segurou firme os ombros dela, oferecendo-lhe apoio.
— Calma, querida. Tenha calma. Vai dar tudo certo. Eu vou resolver a situação.
Os olhos de Ester começaram a marejar.
— Herman, eu não quero sair daqui. Não posso ficar longe deste lugar. Isto aqui é tudo pra mim!
— Eu sei, meu amor. O problema é que este lugar é muito caro, você sabe bem disso. Henry está em conflito também. Amanhã, eu vou...
— O que está acontecendo? – disse alguém, em tom preocupado, atrás deles.
Ester tratou de enxugar os olhos marejados, recompondo-se. Herman retirou as mãos dos ombros da esposa e, sem jeito, as colocou nos bolsos da bermuda. Voltou-se de frente a outro jovem casal: Joaquim e Iolanda, vizinhos, moradores da casa mais à leste da enseada.
— Ester, você estava chorando? – perguntou Iolanda com sincera preocupação.
— Não é nada demais – disse Herman. - Ela está emocionada porque Henry vai se casar novamente.
Daí por diante, Ester já não acompanhou mais a conversa de felicitação pela graça deles em ter um filho tão bom. Queria se recolher para refletir. Os casais se despediram numa rápida conversa. Herman, sem demora, enlaçou a esposa pela cintura e a conduziu de volta à casa. Enquanto caminhavam, ele a consolava com palavras de incentivo:
— Amor, não se preocupe. Amanhã, eu vou falar com o Henry. Tudo vai ser resolvido. Agora, levanta essa cabeça e venha tomar café comigo.
TRÊS DIAS DEPOIS
Gael conduzia Herman na cadeira de impulso flutuante com muito cuidado pelos corredores do Jardim do Éden. O rapaz começara a trabalhar havia pouco tempo na empresa, apesar disso desenvolvera uma empatia genuína por alguns dos casais residentes. Por isso, Herman não estranhou as perguntas e comentários do novo funcionário.
— Olha, o senhor me desculpe, mas esse teu filho aí não presta. Não tem coração.
— Meu afastamento será temporário, Gael. O Henry enfiou os pés pelas mãos e fez alguns investimentos ruins no mercado financeiro. Mas eu vou retomar o controle dos meus negócios. Você vai ver. Logo estarei de volta.
Herman relembrou a conversa difícil que tivera com o filho. O casamento dele e algumas decisões empresariais equivocadas haviam causado aquele problema inesperado. Agora, ele teria de ir à luta e retirar a sua firma de bebidas importadas do vermelho. Não havia como pagar duas hospedagens tão dispendiosas. Graças a Deus, conseguira manter Ester no Éden.
— Como estão as pernas? – Gael perguntou, retirando-o de suas preocupações financeiras.
— Estão se recuperando bem. Mais duas ou três sessões de fisioterapia e estarei novo em folha.
— Quem bom. Ei, estamos chegando – avisou o rapaz apontando a grande porta de vidro fumê. – O senhor, finalmente, vai poder se despedir da Dona Ester.
Assim que Gael conduziu a cadeira flutuante para dentro da enorme câmara refrigerada, uma espécie de corredor longo e largo, Herman arrepiou-se diante da quantidade excessiva de cápsulas dispostas ali dentro. Elas assemelhavam-se a caixões funerários feitos de plástico reluzente com tampas de vidro. Todos os módulos estavam perfilados e inclinados a noventa graus, conectados às paredes do lugar.
Depois de avançar por quase oitenta metros, Gael parou a cadeira e a virou de frente para uma das cápsulas. Em seguida, o rapaz ajudou Herman a se levantar. O velho residente imediatamente sentiu as articulações dos joelhos estalarem e doerem ao se posicionar de pé. A idade de seus setenta e cinco anos, mais o período de inatividade física, limitavam os movimentos.
Herman, em andar trôpego, auxiliado por Gael, aproximou-se do módulo. Observou ao lado a cápsula vazia onde ele estivera em hibernação há quase cinco anos. A cada quatro meses, os funcionários retiravam-no do sono para que ele pudesse receber sessões de fisioterapia mais intensas.
No entanto, sua estimada companheira não precisava mais de fisioterapia. A esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa rara, já avançara a tal ponto de deformar todo o corpo dela, deixando-a quase paralisada. Seus pulmões sequer conseguiam aspirar o ar por conta própria.
Ele contemplou reverente o rosto velho e pregueado da esposa, retorcido pelos músculos atrofiados, repletos de elétrodos e cateteres venosos conectados à máquina. Aquele invólucro tecnológico de última geração permitia a Ester viver e sentir as sensações físicas comuns num mundo projetado em sonhos lúcidos. A consciência sensitiva era preservada e retroalimentada pelas lembranças mais felizes.
— Gael, ligue o monitor, por favor. Quero ver o que ela está fazendo?
O rapaz clicou no seu computador de pulso. A tela, localizada acima do módulo, brilhou. Herman viu a sua amada mulher passeando solitária na praia, desanimada, molhando os pés à beira-mar, enquanto contemplava o lindo pôr do sol no horizonte.
— Eu voltarei, minha querida – disse emocionado por entre lágrimas. – Não te preocupes. Levanta essa cabeça, menina. Eu voltarei!