UM PÉ PERFEITO

Um dia, casualmente, Ananias repara no pé da secretária do patrão, calçado na ocasião com bonita sandália de couro. Impressionou-se com a delicada perfeição do seu formato, nem gordo, nem magro, belos dedos de tamanho proporcional e harmônico, pele de coloração levemente morena que exalava suavidade. Em síntese, o exemplar mais bem acabado de quantos membros da espécie ele vira antes.

Os pés de D. Andréia constituem, na verdade, o ponto de partida para a beleza que vai subindo e envolve a eficiente companheira de escritório. Seus diminutos 1,60m compõem-se de pernas bem torneadas, quadris que justificam a parada do ônibus da admiração, cintura fina, seios de tamanho suficiente para destacar-se na paisagem corporal e um rosto de traços finos e discretos, cujos sorrisos vinham sempre na medida certa para cada situação. Os olhos, geralmente firmes e serenos, pareciam sorrir e cobrir-se de meiguice quando ela falava ao telefone com o namorado.

Ananias aprecia a maneira como D. Andréia se comunica com todos os colegas da empresa. Trata o pessoal com simpatia e respeito, dificilmente alterando ou erguendo a voz para explicar eventuais deslizes na execução do serviço. “Seu” Osório, o dono da firma, sabe da capacidade da moça, confia em seu bom senso e até lhe pede conselhos na presença de quem estiver por perto.

É um prazer cotidiano assistir ao desempenho da secretária de tipo “mignon” (Ananias aprendera esse termo recentemente). A pequenina levanta e apura informações como poucas pessoas, seja em contatos pessoais, seja por meio da Internet. Tem sempre tudo pronto e conferido para levar ao chefe ou a outrem. Verdadeira gigante num pequeno frasco de perfume. Ah, sim! Faltou dizer que a menina é muito cheirosa.

Em sua função de contínuo, o rapaz procura fazer o melhor que pode para atender a todos, inclusive à D. Andréia. Vez por outra, tem oportunidade de também com ela trocar informações de caráter mais pessoal.

Como naquela tarde em que ele lhe contou haver interrompido seus estudos na universidade para começar a trabalhar e ajudar a irmã e o irmão a sustentar a mãe. O pai morrera repentinamente e, mesmo em vida, nunca foi homem abastado. Custeou os estudos dos filhos com certa dificuldade, especialmente os do caçula Ananias, que só conseguiu ingressar em universidade privada. Como a mãe jamais trabalhara, o dinheiro que ganhavam os irmãos ficou curto, o que obrigou a contar com arrimo adicional na família.

Tal situação já leva quatro anos, sem que o esforçado contínuo encontre maneira de retomar seus estudos. O importante, para ele, é desempenhar-se satisfatoriamente e saber que nada falta à genitora.

Por sua vez, D. Andréia contou também ser a caçula de sua família, bem como a única a deixar sua cidade para vir trabalhar no Rio. Formou-se dois anos atrás e logo surgiu a oportunidade de trabalhar na empresa do Sr. Osório, na qual se sente satisfeita. Mencionou seus planos, porém, de estabelecer futuro negócio próprio, em parceria com o namorado.

As conversas entre os dois colegas de escritório compreendem, igualmente, atividades de lazer de sua preferência, como cinema, música e literatura. Ambos descobriram que coincidem no gosto por algumas obras de Bruno Barreto, Chaplin, Milton Nascimento, Liszt, Fernando Sabino e Gabriel Garcia Marquez. Para seu deleite, o rapaz vem a saber que a moça, assim como ele, torce pelo magistral Fluminense.

Eis que, numa segunda-feira, Ananias percebe que o olhar da colega se revela sombrio. Não resistindo à curiosidade, pergunta-lhe o que há e ouve a resposta de que ela terminara o namoro. Compadecido, e valendo-se de uma tarefa de rua, o rapaz traz para a amiga uma caixa dos bombons de que ela dizia mais gostar.

A partir de então, os dois passaram a conversar mais e a encontrar-se, depois do expediente e nos fins-de-semana, para assistirem a sessões de cinema, a shows musicais e a outras atividades do gênero.

A amizade não demorou muito em naturalmente evoluir para o amor. Estimulado por Andréia, Ananias finalmente encontrou tempo e disposição para concluir seu curso universitário.

Após sua formatura, “seu” Osório convidou-o a exercer outras funções na companhia. Tão bem se saiu que, em breve tempo, aperfeiçoou seus conhecimentos com novos cursos, galgou posições e chegou ao cargo de diretor na área de sua formação. Seguiu, por assim dizer, os passos da namorada, que também veio a chefiar outra diretoria da firma.

No curso dessa trajetória ascendente, Andréia e Ananias casaram-se, em cerimônia simples, com a presença de poucos familiares e colegas, além, claro, dos padrinhos, Osório e sua esposa. O casal ainda usufruiu da convencional lua-de-mel na paradisíaca cidade praiana de Arraial do Cabo, no estado do Rio de Janeiro. Corrija-se, em tempo, grave omissão destas linhas: ambos são naturais do mesmo estado, ela, nascida em Petrópolis, ele, no distrito de Anta, em Sapucaia.

Sentado à sua mesa de diretor, Ananias é pura satisfação.

“Tomei pé na vida!” Pensa consigo, a um só tempo divertido e feliz.

Também pudera! Afinal de contas (ou deste conto), D. Andréia tem um pé perfeito.

Revista LiteraLivre n. 30, novembro/dezembro 2021