Ubíquo

O cigarro estava na metade e ele andava rápido.

Parecia que ia chover.

Mas para ele, toda hora parecia que ia chover.

O cigarro queimava devagar, apesar dos passos apressados e do Vento do Norte.

Entre uma quadra e outra, tudo era grande demais, longe demais.

Um pingo caiu na sua testa.

“Será que eu sou menor que isso?” ele se perguntou enquanto enxugava a gota. Ele parou na calçada, observando enquanto aquela micro porção de água escorria da sua mão.

De repente, ele foi tragado pela minúscula quantidade de líquido, e aquilo inundou sua cabeça.

Barulho, explosões ensurdecedoras em verde e vermelho brigavam com linhas grosseiras e irregulares, que pulsavam cada vez mais forte, até criarem dores nas têmporas.

Tudo era uma grande tempestade de apatia, furacões de decepções, relâmpagos de covardia.

Era tudo tão forte, tão grande.

Porque ele era menor que aquilo tudo? Ele pensava enquanto as têmporas anunciavam uma explosão. O piscar era cacofônico, o falar era surdo, o sabor era áspero.

Logo quando ele ia ser mais sinestésico, um som peculiar alcançou seus ouvidos.

Não era mais alto que o turbilhão em sua mente.

Era gentil.

Era natural.

Tão natural, que até as formas abstratas que habitavam sua mente tiverem que parar. Ele saiu da sua cabeça, procurando de onde vinha tal som.

Um luz amarela brilhava de uma vitrine do outro lado da rua.

Um relicário.

Conforme se aproximava, o som aumentava.

Era forte, triste, perseverante, era um som que ele nunca tinha ouvido.

Ele encostou o rosto na vitrine.

Lá dentro, tinha de tudo: Um biquíni amarelo, uma miniatura de uma leoa rugindo, um anjo de porcelana cantando algo em um microfone, um coala de pelúcia, um óculos metálico, um tênis branco, uma pintura de uma garota segurando um tempero, um livro antigo.

Mas o som saía de uma caixa branca.

Era um porta-joias com adornos dourados e uma rosa cravada no centro.

O som se intensificou.

Como mágica, a tampa se abriu.

A música parou por alguns instantes e uma bailarina surgiu de dentro.

Silêncio.

A bailarina, eternizada em uma pose, estava de costas para ele.

Um braço para cima formando um arco misterioso. O outro braço não era visível. O cabelo descia pelo ombro, mas pela parte da frente, então o que ficava à mostra era seu pescoço anguloso, convidativo e delicado.

A música voltou.

Ele tomou um susto.

A bailarina começou a girar.

Era hipnótico.

A cada pequeno movimento daquela volta com perfeições cartesianas tudo desaparecia mais.

E mais.

E mais.

Até que só sobrou ele, o som, e a bailarina.

Agora era possível ver um pouco de sua bochecha e um desenho da ponta do seu nariz. Ele suspirou. E sentiu um vento bater na sua cara. A principio ele achou que era a chuva, mas era algo mais. Ele sentiu gosto de café da manhã de pascoa. Ele se alegrou como se estivesse em uma noite barulhenta e divertida da ceia de Natal. Ele mergulhou em um mar e emergiu em uma praia distante. Ele sentiu seu corpo crescer.

A volta da bailarina estava na metade. O braço antes invisível agora fazia uma mesura elegante em sua cintura. De perfil, seu nariz era perfeitamente esculpido. Suas bochechas indicavam um sorriso. Ele sentiu calor.

E ouviu alguns pássaros cantando. ‘’Mas não tá chovendo?`` ele pensou, mas naquele momento, não havia mais sentido nas coisas.

Ele conseguia tocar o céu. Ele sentia o solo firme sobre seus pés. Todas as extremidades de seu corpo queimavam como uma chaminé aconchegante na casa dos avós.

O som daquele porta-joias agora tomava o ambiente.

Quanto mais a bailarina girava, mais ele conseguia discernir suas características.

Ela tinha olhos sérios e tristes. Eram pesados mas doces. E criavam um contraste excepcional com o sorriso, que era enorme.

Quase tocava as duas extremidades do porta-joias. Quase tocava as duas extremidades do relicário. Quase abraçava o mundo.

Aquele grande sorriso.

Ele tinha certeza que aquele era o sorriso mais lindo que ela já tinha visto em toda sua vida.

Era alegria.

Ele sentia alegria.

‘’Eu estou sorrindo?’’ pensou e percebeu que sim. Ele sorria.

Tinha até esquecido que sabia fazer isso.

Nesse momento, a bailarina estava na sua frente.

Ela olhava para ele.

Em um momento, uma única oportunidade de perfeição, seus olhos se cruzaram e eles estavam conectados. O sorriso dela era lindo porque era o dele. Os olhos eram pesados e tristes porque carregaram quase a mesma coisa que os olhos dele tinham carregado. Os seus rostos se tocaram e eles dançaram juntos. Eles dançaram na lua, eles invadiram outro universo, eles desbravaram a noite.

Eles dançaram. E que dança.

Mas aquilo durou segundos. Mesmo que em sua cabeça houvessem anos, a perfeição sempre dura só um instante.

Ela voltou a girar.

Seu nariz arrebitado agora apontava outra direção.

Seus olhos não se cruzavam mais.

O sorriso estava voltando para o lugar de onde saiu.

Ele voltou a fitar as costas da bailarina.

Ela parou. A música também. E como mágica de novo, a caixa se fechou.

Ele olhou ao redor.

Ele viu um entregador passar feliz ouvindo alguma música em seu fone. Ele viu um casal de jovens pulando em uma poça formada pela chuva, chutando água para todo lado. Ele viu um cachorro que parecia estar sorrindo diretamente para ele. Ele nem percebeu que o cigarro tinha queimado entre seus dedos. Ele viu uma planta verde e viva se erguendo entre as rachaduras da calçada. Ele sentiu um vento frio e libertador em seu rosto.

Ele olhou de volta para a caixa.

Ela permanecia fechada.

Em um ímpeto eufórico, ele decidiu entrar na loja e comprar o porta-joias.

Mas parou.

Ele sabia que aquela bailarina tinha que ficar ali.

O sorriso dela era grande demais para ser dele. Ele sabia que aquele sorriso ainda ia curar muita gente, muita coisa. Então ali era o seu lugar.

Ele sorriu.

’’ Bailarina seria um ótimo apelido para algo ou alguém ubíquo.’’ Pensou e foi embora sem notar que a chuva tinha acabado.

Definitivamente.

Marcus Stanley
Enviado por Marcus Stanley em 29/10/2023
Código do texto: T7919875
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