O Casarão

 

 

Século XX

 

Era o ano de 1990, nossa família se mudou para Transilvânia, uma região situada no centro da Romênia, conhecida por cidades medievais, fronteiras montanhosas e castelos como o do conde Drácula. A cidade, que lembrava esse personagem do cinema, estava transformada para o Natal. Enfeites nas casas, nas lojas, luzes por toda parte, um verdadeiro cenário natalino. 

Eu, um garoto de 15 anos, magro, desengonçado, com a voz ainda em transição e tímido, muito tímido. Novo na cidade e na escola, queria me enturmar, fazer amigos, porém, com minha timidez, não era uma tarefa fácil.

Hoje me pergunto se as lembranças que tenho são verdadeiras ou fruto de uma imaginação fértil e sonhadora de um adolescente que queria fazer amigos e entrar para o grupo dos populares.

No centro da cidade, ao lado da igreja, havia uma construção abandonada, uma casa muito antiga e totalmente em ruínas. E sempre que passava em frente, no caminho da escola, eu ficava imaginando quem teriam sido os moradores dessa casa. Será que não havia nenhum herdeiro para morar ali, fazer uma reforma? Uma construção tão imponente! Quando estou em frente à casa, me aperta o peito uma dor estranha, como se tivesse saudade de algo ou alguém.

Parado em frente ao casarão, perdido em pensamentos, não percebi aproximar-se um garoto e sua turma. Talvez na esperança de intimidar-me, fez um desafio:

 — Duvido  você entrar no casarão abandonado.

Comecei a gaguejar:

— E...eu?

— Sim, você. —disse Carlos, o mais popular do grupo.

Eu, como queria entrar para a turma dos populares e mostrar coragem, aceitei o desafio.  

Pelo portão foi impossível, pois estava muito enferrujado e não abriu, a solução foi pular o muro. O mato tomava conta de tudo, paredes, portas e janelas de toda a casa. Bati, chamei; é lógico que ninguém atendeu, pois a casa estava abandonada há muitos anos.

Finalmente consegui entrar; já na sala pude observar os móveis cobertos por um pano que um dia foi lençol, objetos antigos, quadros com fotos de pessoas, desgastadas pelo tempo, tapetes com mais poeiras que a rua de minha casa sem calçamento, espelhos antigos com molduras esquisitas; uma escada que direcionava ao andar superior. Uma força sobrenatural me guiava para subir a escada e uma coragem, que não sei de onde veio, me impulsionou para o andar de cima.

Vi-me  diante de uma porta, abri com cuidado, pois poderia sair de lá um morcego, sabe-se lá, não era a cidade do Drácula?

No ambiente havia uma cama de casal, apesar de antiga era muito bonita, um guarda-roupa, uma cômoda e um espelho que preenchia a parede inteira.

Quando me olho pelo espelho, não é minha imagem que vejo. Me deparo com um homem que parece ser eu, mas um "eu" já homem feito — barba espessa, cabelos com um penteado estranho, aparentava ter uns trinta anos. Mas era eu, disso tenho certeza.

O homem do espelho era auxiliado por uma jovem, e consigo ouvi-la perguntar: 

— Senhor? Como se chama mesmo a jovem que roubou seu coração?

— Lisa – respondi, com um sorriso no rosto.

— O senhor comprou o presente para a senhorita dona desse sorriso?

— Sim, Bia, comprei uma pulseira, queres ver? 

— Posso, senhor? 

Abro a gaveta da cômoda, retiro uma caixinha e mostro para Bia. Quando levanto a cabeça para olhar minha ajudante e aparentemente amiga, já não sou mais o garoto Bernardo e sim o homem do espelho, o senhor Bernardo. Foi como se estivesse entrado no espelho, assumindo a identidade do homem que refletia.

A casa não era mais a mesma, agora toda enfeitada para as comemorações natalinas, luzes e enfeites disputavam o ambiente com um clima descontraído. Uma casa elegante de móveis luxuosos, lustres pendurados, tapetes finos, criados andando pelos corredores. Parecia uma festa, uma festa de Santa Claus. Pensei estar num desses filmes de final de ano, onde a mágica de Natal acontece.

 Ao sair do quarto e indo de encontro à escada, desço com rapidez. De imediato me deparo com Lisa e a vejo em seu vestido azul rodado, seus cabelos pretos e cacheados estavam presos com uma fita da mesma cor de seu vestido. Ela dançava e rodopiava pelo salão com um homem de meia-idade, parecia ser seu pai.

Lisa, ao me ver, direcionou-me um belo sorriso e veio ao meu encontro. Seu sorriso fez meu coração saltar no peito. Já de frente um para o outro, estendi a mão e a conduzi para o salão para uma dança. Todos ali, ao nos verem dançando, paravam para prestigiar-nos. 

A noite transcorreu de forma agradável e, em certo momento, levei Lisa para outro cômodo da casa e retirei do bolso a caixinha com a pulseira que havia mandado gravar seu nome.

Ela, num impulso, me abraça e beija meus lábios de forma contida. Nossos lábios se tocam e eu fecho os olhos para saborear o momento. 

Quando abro os olhos, estou novamente na casa abandonada, voltei a ser o garoto desengonçado de 15 anos. Procuro algum indício de que havia alguém por ali ou pistas de como encontrar Lisa. Quem era Lisa ou quem teria sido, será que foi em outra vida? Eu nem acreditava em reencarnação. Mas uma coisa era certa, algo muito mágico e místico aconteceu aqui.   

O tempo passou, entrei para a turma dos populares, pois tive coragem de entrar na casa abandonada e isso me rendeu várias histórias para contar. Porém nunca contei realmente para ninguém o que vivi no casarão.  

As lembranças de Lisa continuaram a me perseguir, como se um imã me conectasse para dentro do casarão. E sempre que houvesse uma oportunidade lá estava eu pulando o muro novamente na esperança de vê-la novamente, porém nunca mais a vi. Ficava me olhando no espelho antigo, mas tudo que encontrava era poeira e móveis antigos e velhos.

***

Um ano se passou e a cidade voltou com o clima natalino, luzes, enfeites, músicas e as lembranças de Lisa. Seu perfume doce, sua voz meiga, seu sorriso tímido e o beijo. 

É véspera de Natal e eu aqui em frente ao mesmo espelho, esperando por ela e, como em um passe de mágica, a ouço me chamar. 

— Senhor Bernardo, o que o senhor andou aprontando? 

 O que será que Lisa andou descobrindo? Fiz algumas estripulias escondido dela, sim, no entanto, nada que pudesse lhe deixar assim tão aborrecida.

— Não fui eu, juro! — Não tenho ideia do que se trata, mas nego veementemente.

— Como não foi o senhor? Tem um cavalheiro na porta dizendo que trouxe uma encomenda para o senhor. — Quando Lisa me trata dessa maneira tão formal sei que está furiosa. 

Estamos casados há dois anos e Lisa fica frustrada a cada mês que passa. Desejamos um filho de todo o nosso coração, porém esse desejo está deixando-a deprimida. Como não quero que se sinta na obrigação de engravidar, sei que isso não depende apenas de nosso desejo, existindo outras questões envolvidas, tive uma ideia para trazer um pouco de alegria para essa casa. Mandei buscar do Canadá um cão labrador, um animal dócil que nos traria alegria e viveria livre em nossa propriedade. E quando nosso filho ou filha viesse, ele ou ela já teria um protetor, pois essa raça de cãozinho é muito amiga e carinhosa.

Desço as escadas apressado e a vejo com os olhos esbugalhados encarando o pobre cachorrinho. E de imediato quando me vê, direciona um olhar de fúria. Sobe as escadas por onde desci e bate a porta do quarto com força. Não irei atrás dela, a deixarei sozinha até que sua frustração passe ou que pelo menos diminua e me perdoe se for o caso.

O cão é realmente encantador, pena que Lisa não tenha entendido o motivo de eu ter adquirido nosso amigão aqui. Passo a mão em sua cabeça, ele me retribui com várias lambidas em meu rosto.

— Temos que pensar em um nome para você. Bobi? não. Thor, também não. Vou deixar Lisa escolher, sei que ficou chateada agora, mas você será o nosso melhor amigo, tenho certeza. Vem, vamos dar uma volta pelo jardim enquanto Lisa descansa.

 Parecia que o cachorro nasceu aqui, corria por toda a propriedade fazendo um reconhecimento, e eu me sentei na grama e fiquei imaginando nosso filho ou filha correndo junto. Estico as pernas e deito para olhar o céu azul e sem nuvens, quando de repente, estou do lado de fora do casarão, mas já sou novamente o garoto de 16 anos. Agora quem está frustrado sou eu, que não fiquei sabendo se Lisa perdoou Bernardo ou não.  

Será que vou levar um ano inteiro novamente para voltar a vê-los? Não pode ser assim, quero eles para mim, quero aquela vida. Sinto que é ali o meu lugar, minhas raízes; minha alma chama por eles. E volto todos os dias para me torturar. Porque a cada dia que não os vejo, meu coração adolescente morre um pouco. 

Hoje tenho uma surpresa, talvez porque não esperava, ansiava por esse reencontro, mas não tinha mais esperança de que acontecesse tão rápido. E em março de 1991, quando entro na sala, já me deparo com tudo iluminado, cheiro de bolo assado e, para minha surpresa, encontro Lisa já sentada em uma poltrona em frente à janela com o cão aos seus pés e acariciando sua cabeça,  falava baixo com ele. Ela escuta meus passos, vira-se para mim e me direciona um lindo sorriso. 

— Estávamos preocupados com você, como demorou!

— Preocupados? — Não vejo ninguém, apenas ela na sala.

— Sim, oras, eu e Max! — Agora ele tem nome, Max é um belo nome.

— Posso saber qual o motivo da senhora querer a minha presença assim tão urgente? — Percebo um leve sorriso em seus lábios, como se tivesse tentando disfarçar uma alegria, ou melhor, esconder uma alegria. Lisa me entrega uma caixinha, abro com curiosidade e não aguento quando vejo o conteúdo: um par de sapatinho de bebê, então começo a chorar, um choro de felicidade, de gratidão.

Ajoelhei-me à sua frente e deito a cabeça em seu colo; ficamos assim por um bom tempo, nós três desfrutando uma felicidade que o futuro nos reservava. 

Se antes queria voltar ao casarão, agora não queria nem mais ir embora, meu desejo era ficar ali para sempre, porém, esses momentos eram passageiros e me deixava vazio por dentro.

Não era sempre que os via quando entrava lá, às vezes a separação durava meses, nunca sabia o que encontraria quando entrasse na casa. Já é quase Natal novamente e a última vez que falei com Lisa foi em... nem lembro o mês, sei que faz meses.  

                   **********

— Be, onde você está?

 Viro-me e me deparo com ela, minha Lisa. Entretanto, já não é mais a mesma Lisa, agora uma jovem mulher, mais linda ainda. Ela vem ao meu encontro e me abraça, olho para seu ventre dilatado, grávida! Lisa está grávida e pelo tamanho de sua barriga, o parto se aproxima. 

— Meu amor, não faça estripulias, não queremos que nosso guri nasça antes do tempo.

— Guri? E se for uma menininha? 

— Se for, será a princesinha da casa!

Eu era o homem mais feliz do mundo, casado com o amor da minha vida e em breve seria pai. Ela senta em uma poltrona próxima à cama, de frente para uma janela e começa a bordar. 

Ajoelhei-me à sua frente e aliso sua barriga e a beijo. Fecho os olhos e coloco meus ouvidos em sua barriga; quando abro os olhos, tudo se foi. Não consigo me segurar e choro, choro por saudade, desespero de não saber o que houve com Lisa, com o bebê e conosco.

Grito seu nome, a procuro pela casa, mas sei que se trata de uma procura em vão. Pois a casa voltou à velha aparência, móveis antigos e empoeirados.

            ****

Subo as escadas sem a mínima esperança, arrastando o pé como um condenado; abro a porta do quarto e, de frente ao espelho, vejo o reflexo de Lisa, olho para trás e nada. Volto minha atenção para o espelho e Lisa está lá, sentada na cama e Max sempre ao seu lado. Chamo-a, mas ela não me ouve. Max levanta a cabeça, olha para mim como se me visse, mas volta a deitar-se no tapete. Eu não consigo me fazer ser visto nem ouvido.

O desespero bate, grito, grito até ficar rouco, choro, não consigo me conter. E num momento de fúria jogo um vaso velho que havia por ali no espelho e saio de lá aos prantos. 

Esta foi a última vez que os vi. Todas as noites rezo para sonhar com eles, porém são em vão minhas orações. Volto até a casa todos os dias e nada. Apenas um silêncio perturbador e uma solidão que me enlouquece. 

Resolvi tomar uma atitude, pesquisar quem foram os moradores do casarão. 

              ****

 

No ano de 1992, ainda não havia os recursos da informática, como temos hoje. E eu, um jovem de dezesseis anos, decidi procurar a biblioteca na esperança de encontrar informações sobre o imóvel, alguma resposta para minha pergunta. Diante de um computador da biblioteca procurei por: O casarão da rua Maia número 394.

Descobri que o casarão pertencia à família Hawise. Uma família nobre, o casal que residia se chamava Bernardo Jhon Hawise e Lisa Hawise.

No artigo mostrava que o casal viveu no casarão até a sua morte e teve uma filha, Sarah Hawise.

Havia fotos da construção, dos anos de 1830, uma bela casa, mesmo sendo a foto em preto e branco, percebia-se a bela casa de outrora. Infelizmente, não havia mais nenhuma informação sobre o assunto, nada sobre herdeiros, parentes, como se a família tivesse evaporado. Uma certeza pude constatar, Lisa não era um sonho, ela realmente existiu.

Nunca mais voltei ao casarão. No ano seguinte fui estudar em outra cidade, e a vida adulta cobra seu preço. Formei-me em Direito e trabalho numa empresa multinacional. 

Tive várias namoradas ao longo desses anos e quando as coisas começavam a ficar sérias, o romance esfriava e nunca, nunca um grande amor me tomou conta. Sempre trago a Lisa comigo e não deixo outra mulher preencher esse vazio, como se  amando outra, eu estivesse traindo-a. 

Aos trinta anos sou um homem realizado na área profissional, tenho amigos e colegas de trabalho, sou respeitado por todas as conquistas realizadas na sociedade. Meus pais ainda residem no mesmo endereço e sempre que os visito, não deixo de passar em frente ao endereço de Lisa. A casa não existe mais, como não havia herdeiros a construção veio abaixo. E o estado tomou posse do terreno e vendeu para uma empresa de construção civil. Um grande complexo foi erguido em seu lugar. O telefone toca, tirando-me  de meus pensamentos. 

— Fala, Rafael. — Um amigo do tempo do colégio, que não perdi o contato.

— Be, cara, faz tempo que não nos vemos, uma colega de trabalho está de aniversário e vai reunir um pessoal num bar, vamos tomar uma cerveja, bater um papo e te apresento a aniversariante. 

— Vamos, me passa a localização por mensagem.

Realmente o lugar era animado, música agradável, e a aniversariante Lucy era linda e simpática, percebi que meu amigo tinha uma queda por ela. No meio do salão, observei uma jovem, de cabelos pretos e cacheados, que estava de costas para mim. Não sei por que, senti um formigamento no peito, uma dormência nas mãos e comecei a suar. A moça se vira e vem ao meu encontro, fico paralisado, sem fala, acho que vou infartar. Será que o susto causa infarto? Espero que não, pois esperei uma vida inteira para ver novamente aquele rosto. Estamos de frente um para o outro e ela toma a iniciativa e fala:

— Oi! Meu nome é Lisa, até que enfim te encontrei.

 

                                                        

 

 

                                                   Juliana Duarte Honorato

 

 

 

Esse conto foi escrito originalmente para a coletânea de contos Fragmentos Históricos, disponível na Amazon.
 

Juliana Duarte Honorato e Imagem: Glau Mendes
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 19/10/2023
Reeditado em 13/12/2023
Código do texto: T7912001
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