CONTO DE OUTONO: QUANDO MORRI EM LYON
POST IT - CONTO DE OUTONO: QUANDO MORRI EM LYON
(Epiphânio Camillo)
A jovem Catierina acordou bem cedo, como de hábito. Aliás, naquele dia nem havia dormido, essa a verdade. Passara toda a noite agitada, tensa. Algo de muito sério para ela não lhe escapava do pensamento; ao invés, insistia. Mulher de muita fibra não tinha o costume de refletir em demasia sobre nenhuma questão a que fosse apresentada: gostava de agir rápido, ter respostas contundentes e imediatas às indagações. Suas perguntas sempre eram precisas, pontuais, incisivas, cortantes.
De família numerosa, para chamar atenção sobre si, aprendera que para sobreviver e se fazer notada, teria que praticar artimanhas infantis, as inúmeras artes dos disfarces, abusando do vitimismo que lhe permitia a fragilidade aparente, exacerbando bronquite crônica que cultivava e à qual recorria nos momentos de menor protagonismo. Depois de adulta, percebeu que tal mecanismo de proteção e poder não mais surtia resultado; porém, o substituiu por outras peraltices mais elaboradas.
Nos últimos tempos, entretanto, vinha sendo submetida a determinado tipo de paciência compulsória a que não estava acostumada e com a qual intimamente se rebelava. Faltavam respostas e definições para suas ansiedades amorosas. Estava novamente apaixonada, mas carecendo de novo desenho para seu projeto de vida... Que sabia não andava lá muito bem.
Desde mocinha sonhava com o casamento “conto de fadas”: véu, grinalda, bênção dos anéis, igreja florida, a cerimônia do arroz e, principalmente, o “foram felizes para sempre!” Este era o ponto que estava “pegando”. Casar-se com todos os rituais aprendidos e para os quais fôra treinada. Treinada? Considerava o vocábulo um verdadeiro horror!
Já havia passado pela experiência, mas o “feliz para sempre” como constava dos manuais não se apresentou. Logo no primeiro ano da denominada vida-a-dois percebeu que o casamento não era o esperado e prometido conto de fadas.
Quase imediatamente após as liturgias e cerimônias descobriu que haveria de estar sempre negociando com seu parceiro até o modo de dobrar as toalhas de banho. Pode parecer isso muito pouco para ameaçar a união e a felicidade de um casal, porém “são a partir dessas pequeninas coisas, prosaicos desacertos repetidos diária e indefinidamente que germinam as principais sementes da tal árvore do desentendimento”, leu em revista de autoajuda em consultório médico. Detestava esse tipo de publicação, mas, fragilizada, sucumbiu à curiosidade da leitura, embora sem convicção.
De vez em quando, deprimida, também apelava às orações, ditas salvadoras. Sofria de desimportâncias.
“Para alcançar um mínimo de felicidade e tranquilidade é preciso estar sempre atento e podar continuamente os galhos dessa árvore da felicidade, recolher sistematicamente as folhas que vão se desprendendo e flutuam, flutuam, flutuam para nem sempre caírem no chão. Nem ceder à ilusória sensatez do impulso de cortar o mal pela raiz. Nunca! É grande erro, bastante comum, buscar extirpá-la. Quem o faz está muito próximo da tragédia.” Essa a lição e aconselhamento que encontrava junto às amigas calejadas pelos infortúnios amorosos, às quais recorria cada vez com mais frequência.
O pacato Serguiêi, jeito de bom moço, afeito ao trabalho, gostava de praticar amizades. Sua característica mais visível era a de nunca polemizar com os amigos. Sempre revelava a opinião dele de modo bem particular: não rebatia nem contestava as alheias, mas colocava seus pontos de vista com tranquilidade e polidamente. Com arranjos verbais bem articulados parecia estar concordando com todos ao mesmo tempo, sem desistir de manifestar-se com oportuna precisão. A ponto de falarem sobre ele: diz não a um pedido e saímos agradecidos! Um mestre na arte de absorver as sugestões e transformá-las em enunciado único onde cada qual poderia enxergar parte de sua própria opinião.
A jovem Catierina e o pacato Serguiêi eram amantes na mais completa acepção deste vocábulo. Nas suas diferenças e temperamentos, em clima de inescondível encantamento, sonhos e desejos semelhantes que se complementavam, foram felizes para sempre até que a mútua peculiaridade tomou conta e a ela os submeteu. Perceberam na equação da aritmética entre pessoas que se querem bem, a adição apresentar resultado inferior ao valor das parcelas.
***
Curiosa, pela manhã no hotel quando o pacato Serguiêi foi ao banho, a jovem Catierina não resistiu e leu no bloco de notas ao lado da cama o que o vira escrevendo antes de se levantar:
MAGO APRENDIZ
"Comigo me desavim, sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo nem posso fugir de mim.
(Sá de Miranda - 1495-1558)
ela crê em duendes
eu não
vê anjos
nuvens azuis
pêlo em ovos
luz nas sombras
ela acredita em mim
eu não
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A jovem Catierina compreendeu que ela e o amado Serguiêi habitavam mundos diferentes. Para ambos incomodava a difusa e indisfarçável limitação das alegrias.
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Era setembro. Em Lyon.
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(2001)
(Inspirado em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk - Nikolai Leskov, 1865