Uma Causa Solitária
Quer coisa mais solitária que o amor? Se existe, eu desconheço. O amor é solitário demais. É uma confidência minha comigo mesmo, com meu coração, com minha alma. O amor é um grande segredo, e nada me faz mais solitário do que meus segredos. Por amor a gente faz coisas idiotas, impensáveis, fora do juízo normal, e em segredo. Por que será que lá dentro da gente ninguém alerta que isso é irreal, anormal, sem qualquer traço de bom senso?
O amor não tem nada de sensato. É uma completa falta de sensatez na verdade. É ridículo, besta, é uma tortura, é tão bom que dói, e dói tanto que chega a ser bom. É tudo isso e mais um pouco, mas acima de tudo, ele é solitário. E eu até arrisco dizer que o amor mais genuíno que existe é o amor solitário, ele não pede nada, não exige nada, e nem condiciona nada. Ele é completa concessão. Ele ama sozinho e sofre sozinho.
Já amei tanto solitariamente, que algumas histórias até merecem ser contadas, de tão ridículas que são. Ora, mas Fernando Pessoa disse que só aqueles que nunca foram ridículos no amor é que são verdadeiramente ridículos, e eu concordo com ele. Mas observe só uma de minhas aventuras amorosas solitárias, e conclua por si mesmo se a coisa ridícula não acaba resultando afinal em outra coisa até meio poética.
Todos os dias eu fazia o mesmo ritual, da mesma maneira, feito um autômato. Saía do meu trabalho, pontualmente, às cinco e meia da tarde, e sabia que a criatura saía do trabalho dela às seis e meia. Que criatura? Há de se perguntar. Pois respondo. A criatura que tirava meu juízo e expulsava minha razão. O ser por quem eu subiria mil andares só pra descer flutuando. Aquilo que nem Freud explica e eu chamo de castigo pra todo ser que possui coração, a manifestação do amor.
Mas enfim. Eu saía, sempre, completamente exausto do trabalho, cansado, doido pra chegar em casa, tomar um banho, comer alguma coisa e me atirar no sofá pra cair em descanso merecido. Acontece que eu não ia pra casa. Não imediatamente. Eu tinha um compromisso sagrado. Não podia deixar de cumprir. Precisava de uma dose diária de ilusão. Necessitava de me sentir completo, feliz, pleno.
Então fazia assim. Saía do trabalho, caminhava até uma praça que ficava perto dali, e lá ficava matando meu tempo até dar seis e meia. O que eu ficava fazendo lá é um caso à parte. Pra matar o tempo eu lia, conversava com as criaturinhas que passavam por ali, a grande maioria acima dos sessenta anos de idade, coitados, eles me contavam histórias, trechos da vida, episódios marcantes, e tantas outras coisas que, dariam muitos e muitos novos contos, e todos bonitos com certeza, tão bonitos que quem sabe eu compartilhe em outra oportunidade. Mas confesso, fui refletir sobre essas histórias que me foram contadas bem mais além. Porque naquela oportunidade eu não estava exatamente interessado nas tais histórias. Eu escutava, mas não ouvia, não com sentimento. Queria mesmo é que desse logo seis e meia, ou melhor, seis e vinte, pra que assim eu pudesse correr apressado até a porta do serviço da criatura, fingir que estava passando despreocupadamente pelo local e então cumprimentá-la.
É isso mesmo, tudo isso por um cumprimento. Se acha que é pouco, pra mim era a maior alegria do dia, a recompensa depois de uma rotina de trabalho, o prêmio depois do sacrifício da espera. O simples “olá” do ser em questão me colocava em um degrau mais elevado, e se de lambuja eu ainda ganhasse um sorriso, estava completo, pacote fechado, minha vida estava paga e eu podia até morrer ali. Morreria, mas com a iluminação de um sorriso, e daí já não seria mais morte, seria preparação para o paraíso.
Todo santo dia era isso. Eu vivia esse meu amor solitário. A criatura não sabia, ninguém sabia. Só eu, e Deus era meu cúmplice. E sem dúvida, caçoava de mim todos os dias.
Como eu podia ser tão corajosamente estúpido daquela forma. Dedicar uma hora inteira do meu dia a uma causa totalmente solitária e unilateral. Por que não falar de uma vez para a criatura que eu era louco por ela? Se declarar. Por que não? O máximo que poderia acontecer era ela me cuspir um não na cara. Porque pra mim o não sempre lembra uma cuspida, por mais elegante que seja.
Mas aí eu estaria liberto. Para sempre. E com minha carta de alforria em mãos, não precisaria mais dessa tortura diária, esse contratempo de esperar na praça, aguentar velhinhos me enchendo o saco, passar por perigos, chuva, frio. Eu, enfim, seria livre. Poderia ir direto pra casa. Chegando uma hora mais cedo teria tempo de ler trinta páginas daquele livro interminável, um episódio a mais daquela série que comecei há uma semana e não vejo a hora de terminar, poderia comer com mais calma, aproveitar o lar, e viver, enfim, de maneira mais realista.
Ah pro diabo que carregue todo mundo!
Quem disse que eu queria ser liberto? Quem concluiu que eu queria me declarar? Quem pensou que eu queria realidade? Eu não! Me deixem em paz. Realidade me colocaria no chão, me tiraria o prazer da imaginação. Imaginar o beijo na boca daquela criatura perfeita, tentando adivinhar que sabor teria. Pra mim, cada dia o beijo tinha um gosto diferente, de baunilha, de pimenta, de chocolate, de pasta de dente, ahh de vinho encorpado repleto de taninos, sabor de fogo, de ardor, de novidade, de coisa errada, proibida, de desejo, de mistério, de descoberta, de juventude, de plenitude, de segredo.
Ah não. Não queria outra coisa não. A realidade me tiraria o benefício do sentir um corpo quente, aquela sensação que se comunica por si só. Sentir o corpo perto, seu cheiro, sua essência, seu som, seu respiro. Sabores. Provar o sabor de uma orelha, de uma nuca, das costas que sempre sugerem um caminho a percorrer, o doce som das palavras ditas de maneira sussurrante, e que não precisam ter significado, apenas o cheiro do bafo quente. Sem minha ilusão, como faria pra imaginar, altas horas da noite, se aquela criatura estivesse do meu lado, com o corpo virado para o lado oposto, só esperando o meu abraço, contornar aquele corpo e prendê-lo nos meus braços. Esperando minha mão encontrar a sua, corpo encostando em corpo, e a cama sendo o que ela nasceu pra ser, plataforma para amantes. E então mais nada, palavra nenhuma. Só o silêncio tem permissão pra falar nesses casos.
E por tudo isso, definitivamente, não, não queria o real, apenas a ilusão. Queria o abstrato. Ver aquilo que eu não posso distinguir. Sentir o que eu não posso mensurar. Imaginar o que eu não posso ter, e só o fato de saber que eu não posso ter desperta em mim a vontade de imaginar o ter. É isso que eu queria, o privilégio da ilusão. Eu faria de tudo por uma ilusão, eu compraria uma briga feia com quem me tirasse da ilusão, pois ela é maravilhosa, te faz feliz. Felicidade falsa, mas quem liga pra isso? Se viver é melhor que sonhar, eu tinha pra mim que sonhar era melhor que viver. Não precisava de mais nada, eu já tinha o ser por inteiro, ele era meu. Nem tinha mais vergonha de mim. Já o vira despido, em meu colo, entregue a mim e só para mim, eu senti seu beijo quente e úmido, eu senti seu corpo todo, minhas mãos a percorrer todos os trechos e curvas possíveis, tudo era tão macio, tão arrepiado, o caminho se contornava, e cada parte tinha seu sabor. Adorava ver a criatura tomar banho e mais ainda enxuga-la. Já o tinha visto dormir e observei como um artista contempla sua obra de arte, como um ávido leitor acaricia e cheira seu livro novo página por página. Conhecia sua voz, seu cheiro, seu sabor. Não precisava de mais nada não. Apenas correr todos os dias para ver, cumprimentar, e às vezes, com muita sorte, contemplar um sorriso.
Mas tanta ilusão assim teria que ser quebrada um dia. Afinal, até quando eu levaria adiante essa rotina louca de perder uma hora diária a fim de amar o abstrato. Pois bem, num horrível dia nublado, eu havia cumprido à risca meu roteiro, saí às cinco e meia, esperei por cinquenta minutos na pracinha, conversei com uma senhorinha interessante até, tinha vindo ao centro apenas para comprar balinhas de hortelã para seu marido que estava com vontade e não podia. Achei bonito, tocante, tive um choque de realidade. Aquilo era amar, um amor real. Ao final da conversa ela me deu uma balinha e se foi. Experimentei. E eu que tinha o costume de imaginar sabores, senti, de verdade, um sabor de amor verdadeiro como nunca vi igual, claro, sabor de carinho, de cuidado, agrado, sacrifício. Senti, na verdade, vontade de chorar, parece que estava me preparando para o golpe que viria.
Então eu fui, rotineiramente. Me dirigi para a frente do lugar onde a criatura saía todos os dias, como de costume, e também, como de costume, eu a vi, aparecendo como sempre, de maneira tão bela. Me ajeitei e me preparei para meu cumprimento formal de todos os dias. Mas aí outra criatura passou por mim, quase que tropeçou, se dirigiu até a minha criatura e a beijou, de maneira longa e apaixonada. Beijo correspondido, vale dizer. E aí, é difícil explicar o que acontece com a gente nesses momentos. Descobri, à duras penas, que não nasci preparado para a verdade, para a realidade. Para mim era preferível a mentira, a ilusão. Era tão mais gostoso, tão menos dolorido. Ainda que clandestina, a felicidade da ilusão é boa e a verdade, por mais correta que seja, dói, destrói, quebra por dentro, tira o efeito da anestesia. Ela não te põe no chão, te arremessa de uma vez.
No fim das contas minha criatura tinha outra criatura. Portanto ela não era mais minha, ou melhor, não era mais só minha, ou melhor ainda, nunca havia sido minha. Outro alguém já tinha sentido seu cheiro, seu sabor, sua essência, seu bafo, seu afago, sua orelha, sua nuca, enfim. Senti um vazio tão grande, tão imenso, que meu coração de tão vazio parecia que sentia sede. Nunca mais aquelas noites esperando abraços, não mais minha mão na sua, não mais a toalha depois do banho secando seu corpo e o tomando pra mim. O que eu faria? Quem eu amaria agora? Pra quem eu guardaria toda a minha paixão, toda a minha vontade e todo o meu afeto quente? Foi como se um pedaço da minha vida tivesse se acabado, um pedaço de minha história inventada que se dissolvia nas linhas paralelas de meu pensamento. Eu fora traído, e agora sabia o que sente uma pessoa traída. Sente um abandono, um nada, um abismo. Não sabia lidar com isso. Eu tinha ciúmes daquela criatura. Não podia suportar ver alguém beijando, acariciando algo que era meu, me pertencia, de maneira abstrata, lógico, mas o abstrato pertence muito mais que o concreto. Amor pra ser amor tem que ser abstrato. Amor concreto é decepcionante, frustrante. A verdade foi constatada por mim. Coração quebra sim, de verdade. Principalmente quando a gente sofre uma desilusão. Nunca tinha entendido muito bem porque o símbolo do amor era um coração, sendo que o amor acontece é na mente. E é mesmo. É na mente que você desenvolve a paixão. Mas é no coração que você a sente. Minha mente foi desumana, egoísta, masoquista, como ousou jogar pro coitado do coração uma coisa que ela inventou. Ela se apaixonou, mas a dor foi meu peito.
E naquele dia eu fui pra casa. Decepcionado, traído, machucado. Fiquei de fossa, Fiquei mesmo. Um final de semana inteiro. Com toda a razão. Eu fui traído, justo eu que fui tão fiel, que enfrentei chuva e sol, vento e frio pra ver a criatura todo dia. Quanto carinho secreto, quanto amor escondido, quanto desejo imaginado, conversas idiotas na praça, tempo de espera, dinheiro gasto em pipoca, sorvete, tudo pra fazer o tempo passar e logo chegar seis horas. Foi muito tempo dedicado a essa relação unilateral solitária e auto tóxica. Eu tinha todo o direito de curtir meu luto. E assim o fiz, prometendo nunca mais amar e me dedicar a alguém daquela maneira.
As semanas seguintes foram difíceis, nada de praça, nada de espera, nada de emoção. De agora em diante era sem o colorido diferente de cada dia. O colorido feliz da expectativa. Nada disso. Eu passei a sair do trabalho e ir direto pra casa. Passei, também, a ter mais tempo pra mim, e isso foi muito bom, realmente.
Mas, com o passar do tempo, comecei a achar que um vazio principiava a criar morada dentro em mim. Ele ia ocupando o espaço e se esgueirando, de repente estava enorme, e cada vez maior. Faltava mesmo algo a que me dedicar novamente.
Tomei uma decisão, eu ia à luta. Já curtira tristeza por tempo demais. Afinal, eu estava vivo, e cheio de vida, de beleza e de poesia pra despejar. Não ia desperdiçar o resto dos meus dias remoendo um amor que não deu certo. Estava cheio de amor pra dar e é isso que eu ia fazer. Era hora de viver de novo.
E assim eu procurei, procurei e achei. Achei sim. E fiquei muito feliz. A nova criatura pegava todos os dias o ônibus no mesmo horário que eu. Como passei a voltar pra casa mais cedo pude conhecer essa nova criatura. E não é que me apaixonei de novo? Um ser lindo, elegante, atraente, de um sorriso muito mais brilhante que aquele outro. Rapidamente descobri o cheiro, o gosto e a essência. E era todos diferente do outro ser. E melhores, diga-se de passagem.
Um dia, ao entrar no ônibus vi que tinha um lugar vago, bem ao lado da criatura. Respirei fundo, pensei bem. Não ousei sentar. De jeito nenhum. Não queria nada de contato físico. Seria muito arriscado. Fiz como era de costume. Fui de pé, só pra poder observar melhor, olhar, contemplar, e imaginar. E aí eu tinha mais uma vez razão pra ir trabalhar todos os dias. Só pra voltar pra casa, de ônibus. Os dias daí pra frente voltaram a ser adoráveis. De novo eu tinha alguém pra chamar de meu. Minhas noites voltaram a ser iluminadas. Minha cama voltou a ser ocupada e de novo estava quente. Outra vez tinha alguém pra enxugar depois do banho e provar de sua orelha, abraçar suas costas quentes e falar através de bafos ardentes. Ah eu tinha, novamente, o paraíso.
Meu coração enfim se debruçava outra vez, se apaixonava outra vez, e se perdia outra vez. Minha vida fazia sentido novamente.
Afinal. Eu não era nada. Não sou nada. E nunca serei nada, se não me dedicar a uma causa solitária. Solitária sim. Solitária mesmo. Nem aí com essa questão, por hora, eu me dedicava a viver em plenitude. Eu possuía alguém.
Meu.
Somente meu.
E de mais ninguém.
Pelo menos agora eu não precisava mais esperar por uma hora. E nisso já saí com vantagem.
Joaquim Távora
27 de julho de 2023.