A  T-SHIRT

 

 

 

I love you T-Shirt

IMAGEM GOOGLE

 

 

 

 

 

Mário olhou para a campa à sua frente, onde repousavam, desde há três meses, os restos mortais de Susana, aquela que considerara para sempre como a mulher da sua vida.
Então, como em letargia, sua mente regrediu no tempo, lembrando a época em que se conheceram …

 


Num sábado à tarde, dia de primavera, luminoso e até um pouco quente, todo o seu grupo combinara ir ao convívio promovido pela Associação de Escoteiros do bairro. Moravam na periferia, bastante arborizada, e os churrascos eram frequentes, no entanto Mário, tímido por natureza, evitava-os, preferia estudar, ler literatura universal, ouvir música ou então ver documentários na TV. 
Perante mais um convite Mário hesitara, pois tinha vários testes escolares na semana seguinte. No entanto, à última hora mudou de ideias e resolveu ir… Cláudio e Bernardo, seus amigos desde o ensino básico, troçavam da sua timidez, e sem o intimidar, forçavam-no a ser mais arrojado com as miúdas. Que diabo, já há muito fizera os dezasseis anos, era tempo de se aventurar em namoros, tal como os outros.
Contudo Mário ficava à beira,  não se decidia a meter conversa com nenhuma moça, por isso era solitário. Os seus óculos de aros démodé davam-lhe um ar conservador, antiquado e a roupa era tudo menos moderna.
Nessa tarde, ele reparou pela primeira vez nela… era branquinha, sardas nas faces, cabelo castanho claro de tranças e vestido de chita, algo antiquado face à moda da minissaia e das calças de ganga justas em vigor. Ouviu alguém chamá-la pelo nome e ela corou. Possivelmente era tímida como ele e por isso até troçariam dela…
Foi até junto do seu grupo, cumprimentou e foi cumprimentado e então resolveu encher-se de coragem e aproximou-se de Susana. Ela fez que não reparava, ele tossiu de embaraço e então os olhos femininos fixaram-se nele por momentos. O coração de Mário disparou a mil, quase lhe tirando o fôlego. ela pareceu algo divertida com atrapalhação dele. Depois do rapaz lhe perguntar o nome, ao que ela respondeu questionando-o sobre o seu, estendeu-lhe a mão e cumprimentaram-se, Susana olhando-o de modo mais demorado, ele corando e retribuindo o olhar com um pequeno sorriso.
Depois ficaram ali a conversar sobre a escola, as músicas e filmes preferidos, motivo de embaraço para Mário pois desconhecia a modernidade em termos musicais, sempre preferira alguns clássicos, Chopin, Mozart, Tchaikovsky, Liszt, uma abominação para os jovens desse tempo. Ouvia-os num velho gira-discos que sua mãe ganhara de uma antiga patroa. Susana achou interessante esse gosto dele, pois nunca experimentara qualquer atração pelos velhos discos de vinil do pai (o advento dos CD’s seria alguns anos mais tarde).
O pai de Susana era muito austero, chefiava uma repartição de finanças e a mãe era doméstica. Ela era a única filha, dezasseis anos feitos há pouco tempo. Isso confiou a Mário, que órfão de pai, tinha uma grande adoração pela mãe. A progenitora trabalhava em limpezas em várias casas e também lavava escadas, sendo paga à hora, ao final de semana, e sempre que fosse necessário. Era uma forma de fazer face às despesas, pois não tinha mais nenhuma fonte de receitas.
Essa troca de confidências e a sinceridade com que o fizeram aproximou-os. Eram dois seres humildes e puros, algo distantes da maldade de alguns colegas. 
O primeiro beijo foi dado um dia em que, anoitecendo, Susana tremendo pelo atraso e a reação do pai, deixou que seus lábios fossem tocados pelos de Mário. Subiu a escada a correr, o coração querendo saltar da caixa torácica. 
Mário sentiu-se o mais feliz dos mortais, já se imaginava um homem destemido, como se fosse um herói da banda desenhada, sem medo de nada, em aventuras salvando sua dama de mil perigos… 
Continuaram o seu namoro, meio às escondidas, Susana temia sempre ser vista pelos pais quando acompanhava Mário na rua, daí ir sempre por artérias mais discretas, menos movimentadas.
Quando ele completou o seu décimo sétimo aniversário, ela ofereceu-lhe uma caixa de papelão cuidadosamente embrulhada. Ele abriu-a e tirou de lá uma t-shirt azul escura com os dizeres “ I LOVE YOU”. Emocionadíssimo, Mário beijou-a com paixão e ali sentiu algo mais que uma simples atração, jurou-lhe que apenas seria dela e de mais ninguém. Ela chorou emocionada e também lhe fez o mesmo juramento.
Os anos passaram, o namoro seguiu-os até à faculdade, Susana conheceu a mãe dele, uma pessoa realmente humilde e muito educada. Adorou a progenitora do seu Mário. No entanto, quando falou com os pais sobre o seu namorado, a reação deles, principalmente do pai, foi violenta e ela temeu algo mais drástico, por isso, deixou de abordar o assunto. 
Quando ambos completaram as respetivas licenciaturas, ele em gestão e ela em finanças, e obtiveram um bom emprego compatível, tomaram a decisão de casar, mesmo sem a bênção dos pais dela.
Trocaram votos numa cidade algo longe da vila onde sempre viveram. 

Os anos passaram e Susana tentou de novo falar com o pai, mas debalde, ele nunca quis comunicar com ela e ambos foram vivendo com esse desgosto. 
Entretanto os filhos nasceram, um rapaz e uma moça, que por sua vez também se desenvolveram sem problemas. Foi na adolescência que tomaram conhecimento da morte da avó paterna, o que os deixou abalados, pois dela sempre tiveram a imagem de uma pessoa muito doce e carinhosa.
Mário emagreceu, a perda da mãe foi um rude golpe para ele. Susana também sofreu muito pois adorava a sogra. Sua mãe foi ao funeral, mas um tanto às escondidas, devido ao carácter rígido do marido.
Mais anos passaram, o pai dela morreu e Mário, que gostava muito da sogra, vendo-a sozinha, convidou-a para viver com eles, pois os netos também iriam adorar viver com a avó materna.

 


A vida segue sempre o ritmo destinado por Deus e agora, ali estava ele, olhando para a campa da sua amada esposa, que um câncer levara da sua companhia.
Chorou muito nesse dia, três meses após o desenlace…
Quando foi para casa, depois de deambular perdido pelas ruas da cidade, abriu a primeira gaveta do seu armário do quarto e pousou em cima da cama uma caixa de cartão, cuidadosamente fechada. Então retirou dela uma t-shirt azul onde a esposa desde nova confessara o seu amor por ele. Deitou-se abraçado a ela e chorou tempo indefinido até se dar conta que a noite já avançara e seus filhos e sogra o olhavam à porta do quarto. A sua filha abraçou-se a ele e Mário sentiu-lhe o rosto molhado de lágrimas compartilhadas.
A sogra e o filho também se sentaram na cama, olhando-o e acariciando-lhe o cabelo. E ali ficaram os quatro, como se o tempo tivesse parado.

 

 

 

 

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 29/09/2023
Reeditado em 02/10/2023
Código do texto: T7896789
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