PRELÚDIO DE NATAL PARA SEXTETO DE CORDAS *

 

 

 

                Ana solta nas noites, gazela. Lagarta no casulo das manhãs. Diante da janela, crisálida.

             São Paulo, um dia a mais, estrela Vésper. Das metamorfoses, quem sabe o exato instante?

             Ana lembrando-se de Daniel na evocação de Cláudia, Cláudia na fúria do ensandecido ciúme a escurecer-lhe os olhos castanho-dourados, olhar de Cláudia sempre atento qual cão de caça diante de qualquer ser – mulher, homem, criança, bicho, coisa - que se aproxime de Daniel. Cláudia, a que enlouqueceu de paixão, um pouco mais cada dia e todos em volta, principalmente Daniel, em quem tudo lhe começa e termina. Daniel, retendo ainda entre os dedos os derradeiros grãos de seu amor.

                Versos de espanto, abandono, névoa, quando o ar falta, quando o rosto desaparece no espelho. Hotel, taças de sombras púrpuras, bocas ávidas a refazerem o triângulo inaugurado pela primeira serpente, na única noite efetiva que lhes coube, a Ana e a Daniel. Daniel, o de olhos sombrios, rosto de musgo e neve, Daniel resgatando palavras à morte. Ana, a de olhos acesos, floresta de cabelos, canto buscando o futuro.

 

                Daniel em fuga dos tempos perdidos, os tempos de Cláudia, Ana... Raul, esse Outro, esse inesperado... Daniel se ocultando de todos, longe, algures, cercado de lapsos, verbos, entrelinhas.

 

                Raul, o estrangeiro, as mãos longas colhendo silêncios e melodias sempre-vivas, plantando palavras precisas no branco do papel. Ana se fazendo violino. Dos vários quadrantes imagens musicais que os dois espalham pelos becos, bares, esquinas...

                Ana vagueando por um sonho. Primeiro, a paisagem indistinta, aos poucos ruas, pessoas, ouro nos cabelos, azuis de muitos naipes nos olhos, nas bocas arranjos insólitos de consoantes e vogais...

                ...uma casa um vestíbulo uma sala uma janela um vulto uma mulher um nome: Elisa, a dos pés ciganos, a do corpo perfeito, a do riso aberto, a mesma que partiu há tempos do país do Sol, seguindo o outro estrangeiro. Recostada na janela, olha a neve caindo sobre o bosque onde na primavera os esquilos brincam – agora hibernam e hibernarão por todo o inverno, como no país vizinho, pátria do Papai Noel que as crianças remanescentes esperam, onde as noites vão se alongando...alongando...até durarem, em cada dia, duas vezes completas o círculo do relógio.

                Raul de repente, de um dos quartos. Acerca-se de Elisa, circunda-lhe a cintura, olha também os esquilos invisíveis. Então se voltam, diante de Ana. Elisa ri seu riso branco, estende as mãos, Ana se aproxima, os três, um único abraço. Por que Daniel não chega? De imediato compreende: o sonho é de Raul.

                Cheiro do pulôver de Daniel, dos versos no esconderijo da noite, dos cabelos, da pele, na pele de Raul dormindo.

                No sonho de Elisa, Ana chega à janela de Raul e olha o Sol prédios letreiros antenas cruzamentos minúsculos passantes com pacotes de Natal. Da janela de Daniel e de Cláudia, à deriva, as imagens são campos de neve no sonho de Ana. Siegfried vê, no seu sonho, viagens de antepassados nos mares do Norte, sem nenhum aviso da incursão noturna de Elisa ao país do Sul.

                Letreiros se acendem, o violino toca. Aos poucos, as notas escapam da pauta, voam, descem à praça, se esgueiram dos automóveis, dos semáforos, dos edifícios, dos mendigos e vão entrando no quarto de Ana já em outra harmonia que, durante o trajeto, foram se perdendo do roteiro original.

                Risos em fuga, Cláudia; Dança do fogo, Elisa. Violoncelo de Siegfried, grave contraponto. Dialogam os violinos, piano, pianíssimo, vai nascendo a borboleta enquanto o céu tece a Lua, logo mais completa e branca como um haicai de Bashô.